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Sinopse

Perdido e gravemente ferido após ser emboscado por pistoleiros, William Blake tem um encontro revelador com um nativo americano chamado Ninguém, que ele acredita ser o poeta inglês.

Crítica

É evidente já nos primeiros planos de Homem Morto que William Blake (Johnny Depp) não foi talhado para viver em meio à selvageria e aos rompantes frequentes de violência do Velho Oeste. Por meio da troca de companheiros de vagão, a cada paragem, o cineasta Jim Jarmusch, ao mesmo tempo, nos apresenta esse estranhamento e a distância da viagem empreendida pelo protagonista. Os capítulos são emoldurados pelos acordes marcantes da guitarra de Nei Young, elemento quase onipresente na narrativa, encarregado de lhe dar o tom. O personagem de Depp chega à cidade na qual pretende trabalhar como contador, depois de um convite por carta. É recebido com crescente hostilidade, o que reforça a sensação de não pertencimento, até ser enxotado do seu provável emprego pelo patrão despótico interpretado pelo grande Robert Micthum. Recebido com gentileza apenas por uma ex-prostituta que lhe dá guarida e carinho, ele é vítima de outro infortúnio, este responsável por fazer dele procurado.

Na filmografia de Jarmusch é constante a figura do forasteiro, do que precisa se adequar a uma terra diferente da natal. Aqui, ele transporta isso para o oeste selvagem, espaço histórico para os norte-americanos, então tornado mítico pela maneira como são entrelaçados a conduta bélica predominante e os ensinamentos indígenas milenares. Isso ocorre quando Blake encontra Ninguém (Gary Farmer), nativo que o ajuda a seguir viagem, agora na condição de foragido, pelas entranhas daquele território ainda bastante agressivo. Aliás, esse escudeiro representa igualmente o “estrangeiro”, pois retirado do convívio com os seus na infância, obrigado a aprender a cultura branca, retornando depois de muitos anos obviamente “contaminado” por um modo de vida que não é propriamente o dos povos ameríndios. Blake e Ninguém fazem caminhos inversos, já que o homem urbano, ao adentrar na floresta, se “desciviliza” cada vez mais, por assim dizer, exatamente para moldar-se ao novo.

A belíssima fotografia em preto e branco de Homem Morto é um dos componentes que mais contribuem para imergirmos nessa realidade permeada pelo mistério dos ensinamentos ancestrais. Jarmusch povoa a trama como uma série de interessantes personagens secundários que, independentemente do tempo de permanência na tela, servem para delinear os mundos bastante particulares pelos quais o protagonista transita. O trio de pistoleiros profissionais é um bom exemplo disso. Embora mantenham o perigo sempre a um passo de alcançar Blake, eles possuem valor maior enquanto sintomas crassos do entorno. Existe lugar até para bizarrices, como a confirmação dos boatos a respeito do canibalismo de um deles, algo tratado com Jarmusch com insuspeita naturalidade, afinal de contas naquele ambiente até uma extremidade dessas é perfeitamente cabível. Há, também, as ótimas participações especiais dos conhecidos John Hurt, Gabriel Byrne, Iggy Pop, Billy Bob Thornton e Alfred Molina.

O foco principal de Homem Morto é a jornada física e espiritual de Blake rumo ao inevitável. Confundido por seu companheiro de viagem com o poeta inglês homônimo, ele gradativamente deixa de ser o jovem medroso que chegou ao fim da linha ferroviária para se transformar numa espécie de paradoxo. Uma vez que em seu processo de aclimatação é instado a absorver a violência desmedida do branco e a sabedoria profunda dos indígenas, ele passa a ser parte de duas instâncias que historicamente tendem a se anular. Neste filme cuja atmosfera transpira as inquietudes do protagonista, e mais especialmente as do cineasta no que concerne a essa dificuldade de coexistência, o deslocamento é uma condição imprescindível, tanto para escapar dos perseguidores quanto para eventualmente transcender a banalidade. Pintado literalmente como nativo, Blake se torna quase impermeável, uma criatura que, a despeito da impossibilidade de escapar do destino fatídico, sobrevive até cumprir sua missão.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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