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Sinopse

Pedro trabalha numa grande estatal sediada no Rio de Janeiro. A empresa está prestes a ser privatizada, movimento muito comum no Brasil dos anos 1990. Obrigado a demitir sua equipe e se aposentar, ele se muda para sua interiorana cidade natal e descobre que a onça pintada que habitava as redondezas na sua infância ainda está viva.

Crítica

Antes de qualquer outra coisa, Homem Onça chega num momento oportuno. Aos que estiverem sensibilizados (e indignados) com o atual processo de privatização dos Correios, provavelmente serão mais dolorosos os primeiros planos do longa dirigido por Vinícius Reis. Voltamos à segunda metade dos anos 1990 por meio de imagens verídicas de protestos contra a cessão da Vale do Rio Doce à inciativa privada. E, em determinado ponto da trama, Pedro (Chico Diaz) vocifera contra esses “novos tempos” mencionados à mesa pela filha que cita o professor de pensamento neoliberal. Não estamos diante de um sujeito ultrapassado que deve ser culpado pela incapacidade de se adequar a novas políticas empresariais, mas de um resistente transformado em chacota pelo discurso corporativo. Ele é alguém que sente na pele o quão amarga é a mudança de perspectiva político-ideológica que transfere estruturas do Estado, portanto, em tese, à disposição do povo e da soberania da nação, para grupos estrangeiros que impõem filosofias homogeneizadoras. Quando o funcionário público com mais de 20 anos de serviços prestados à companhia de gás da União grita que o reformismo cheio de anglicismos é uma falácia, parece que está respondendo à propaganda atualmente veiculada que defende ser bom vender os Correios. E essa conexão evidencia o quão cíclicos são a História e os botes do Mercado.

Nos minutos iniciais de Homem Onça, sobressai o diagnóstico de uma onda de transformações: demissões, alterações de nomenclaturas e desativações de projetos ambientais de reconhecimento internacional. Nada envergonha a lógica business que tem como pilar fundamental um estrangeirismo agressivo. Pedro passa a conviver com crescentes indícios de que a realidade está prestes a sofrer guinadas radicais. São cada vez mais comuns na empresa as conversas de corredor feitas em inglês, o idioma imposto como régua para medir quem deve ou não participar da próxima realidade empresarial. Vinícius Reis dilui essas observações melancólicas em momentos distintos – como quando a personagem de Silvia Buarque, esposa do protagonista, brinca sobre a mentira contada na entrevista de emprego ou mesmo no pronunciamento do CEO feito na língua anglo-saxã. Aliás, nessa dinâmica do auditório é sintomático que os bilíngues fiquem na parte da frente da plateia. Os demais, ou seja, os que precisam de tradução, permanecem ao fundo. Assim, visualmente, o filme apresenta a ordem das coisas que vigorará a partir dali. Não demora para que a trama se bifurque, apresentando alternadamente o protagonista lutando na cidade grande contra o futuro excludente e ele, anos depois, morando no meio do mato, em outra configuração familiar, mas não menos angustiado pelos estilhaços.

Vinícius Reis bem poderia fazer de Homem Onça um daqueles thrillers corporativos labirínticos e repletos de tensão, nos quais a pressão das modificações drásticas de cenários caros ao protagonista aconteceriam de maneira desaforada. No entanto, ele prefere trilhar um caminho bem mais sóbrio, apostando em desacelerar o ritmo para focar-se na impotência dos personagens e na leitura de uma sociedade anestesiada rumo à nova era. A relação estabelecida entre as duas linhas cronológicas anuncia uma possível convergência. Antecipamos que chegará o ponto de descobrir como Pedro se separou da esposa (com quem parecia muito satisfeito), de que forma aconteceu seu desligamento da empresa, enfim, como essa reviravolta ultrajante repercutiu. Ainda que nem sempre consiga tornar intenso o diálogo entre cidade (passado) e mato (futuro), o realizador evita celebrar demasiadamente a ideia de que uma apenas existe como forma de se chegar ao outro. O antes não se torna uma mera burocracia para atingir o hoje. Não é como se estivéssemos numa corrida de revezamento à espera da passagem de bastão. A comunicação entre as linhas temporais se dá no sentido de ambas serem caracterizadas por tantas impossibilidades. Pedro é profundamente alterado e nem o resgate das raízes (a terra e o amor da juventude) dá conta de aplacar a dor persistente. O quebrado apenas pode ser remendado.

O que Homem Onça tem de melhor é a leitura de uma sociedade arruinada pela obsolescência como parâmetro fundamental. O que era bom até ontem, amanhã será desprezado. Os planos-detalhe do walkman deixam essa noção implícita. Afinal de contas, quem nasceu nos anos 1980 sabe o quanto esse objeto era desejado. Passados apenas alguns anos, virou uma quinquilharia descartável. Mesmo que lute pela permanência da sua equipe numa empresa de exploração de combustível natural – portanto estratégica para a soberania nacional –, Pedro sabe que não tem ferramentas para vencer o discurso economicamente liberal do Mercado faminto. Em determinados pontos, o filme anda meio morno justamente quando poderia acentuar os reconhecimentos e as reações desses homens e mulheres escanteados. No entanto, Vinícius Reis prefere manter-se fiel a uma perspectiva comedida e inclinada à meditação. Embora sejam frutos de uma ideologia econômica dominante e perversa, as novidades rapidamente se tornam padrão e não demoram a ganhar o carimbo de antiquadas. Pena que o cineasta não radicalize a dicotomia entre o homem cordial/eficiente e seu lado animal. O sujeito desterrado não explode como faz, por exemplo, o personagem de Paulo Villaça em Mangue-Bangue (1971), de Neville D’Almeida, que retorna ao primitivo ao entender-se incompatível com o Mercado. Chico Diaz afunda Pedro na areia movediça, ainda que o corpo deste atenda instintivamente ao chamado da natureza.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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