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Sinopse

Homens de Barro se passa em meio a uma velha rivalidade entre famílias, Pássaro e Ângelo vivem um amor proibido, desafiando a culpa e seus próprios medos para viver um grande romance e moldar o próprio destino longe das pessoas que os querem separados. Drama.

Crítica

Homens de Barro se passa no interior do Rio Grande do Sul (a julgar pelo sotaque). Narrado por um personagem que demora a ter revelada sua identidade (e ponto de vista), apresenta um quê de tragédia grega, de conto shakespeariano. A começar pela voz onisciente que fala da disputa entre inimigos mortais. Num lugar em que a pobreza é geral, dois homens administram pequenas olarias concorrentes. O perfil de ambos é o mesmo: agressivos e desagregadores. Por mais que tentem sustentar a aura de chefes de família, falham miseravelmente como provedores de bens e afetos. Os dois chefiam casas marcadas por um patriarcado que transforma esposas em meras reclamantes – isso quando a situação de precariedade está insuportável. O filho único de um e os dois pequenos herdeiros do outro são criados nesse ambiente em que a hostilidade é a primeira fronteira da autoridade. E uma bonita amizade surge entre Pássaro (Arthur Menegon Marques) e Marciano (Pedro Krieger), a esperança de que o ciclo de violência seja interrompido. No entanto, os Tamai e os Miranda são como os Montecchio e os Capuleto de Romeu e Julieta, de William Shakespeare, ou seja, a rixa entre os clãs não permite que nada de bom floresça no encontro entre eles. Os diretora Angelisa Stein e o codiretor Fernando Musa fermentam esse ódio até ele se transformar efetivamente em tragédia e colocar sombras sobre os três meninos.

A primeira parte de Homens de Barro é mais poética, vide as belíssimas imagens da fotografia assinada por Bruno Polidoro. Por exemplo, o menino de costas recortado pela luz do sol poente lidando com os efeitos da raiva acumulada do pai autoritário. Ou ainda as olarias banhadas por luzes e imersas em sombras, cujo efeito visual remonta ao vulto da tradição. Nela temos uma amizade interrompida pela intolerância de “homens de bem” que não conseguem reconhecer as suas incapacidades e fragilidades. Caso o roteiro de Fernando Musa e Gonçalo Heredia explorasse um pouco melhor o silenciamento das esposas, provavelmente essa observação do machismo estruturalmente nocivo poderia ser ainda mais interessante – e não uma nota de rodapé dentro da noção de caminho rumo à tragédia. De todo modo, os patriarcas que perdem tudo no jogo e/ou mantém seus casos extraconjugais, trazendo somente tensão e falta de perspectivas para casa, não são exemplos para ninguém. Enquanto isso, Pássaro e Marciano sofrem as consequências. As brincadeiras eram também formas de evadir um pouco desses mundos domésticos nos quais pais falam grosso e mães são confinadas ao papel de protetoras igualmente tementes. Uma vez proibidos de se encontrar, os meninos são obrigados a aceitar as rusgas dos pais como se elas fossem uma herança da qual é impossível escapar. Trata-se da sina.

A segunda metade de Homens de Barro é menos poética visualmente. E isso não tem a ver com a perda de uma qualidade essencial, mas com mudanças sensíveis para os personagens principais. Marcados pela tragédia que selou ainda mais o ódio entre as famílias, Pássaro (Gui Mallmann) e Marciano (Alexandre Borin) se transformam em sujeitos indiferentes um ao outro. O cenário também muda drasticamente, a julgar pela transformação da olaria de um em atelier de artesanato e a do bar (o principal ponto de encontro da cidade) numa casa noturna frequentemente lotada de jovens. Uma coisa que Angelisa não explora tanto é justamente essa alteração na circulação social da pequena localidade interiorana. Antes, na primeira parte do filme, as ruas são reduto de homens e mulheres adultos, quando muito com crianças obrigadas a acompanhar pais e mães à mercearia para comprar bens indispensáveis. Depois, na segunda parte, esse ponto de encontro é um templo hedonista cheio de jovens ávidos por sexo e bebida, dois símbolos da sua vontade de espairecer. O que aconteceu para essa transformação? Qual o impacto dessa mutação, de um ambiente marcado por adultos agressivos para um cenário cheio de jovens sem muitas perspectivas para além da próxima boca a ser beijada ou da bebida a ser consumida até a noite acabar? A importante metamorfose é pouco elaborada, mas perceptível.

Mantendo o foco na rivalidade permanente entre os Tamai e os Miranda, Angelisa Stein promove uma guinada interessante ao colocar na equação a paixão LGBTQIAPN+ proibida. Pássaro e Ângelo (João Pedro Prates), o caçula da família rival, começam um romance inesperado cercado de impedimentos por todos os lados. Desenhada com inteligência e poucos recursos pela direção de arte assinada por Pauliana Becker, essa terra interiorana propensa à reprodução de brutais comportamentos masculinos tende a rechaçar a homossexualidade. Ainda que, depois do surgimento desse fio de esperança, Marciano seja restrito ao papel do perpetuador automático dos preceitos que levaram seu pai à morte, o filme consegue atribuir às interdições amorosas a natureza e as raízes patriarcais. Pássaro e Ângelo têm um relacionamento proibido menos pelo fato de ele ser homossexual, mais porque esse elo representa a possibilidade de romper o círculo vicioso da violência entre os Tamai e os Miranda. Como sabemos, a selvageria é uma das moradoras mais resilientes das localidades obscurantistas. Nelas, é mais fácil quebrar em duas partes um coração apaixonado do que envergar a perseverança do ódio. O encerramento trágico não diz respeito necessariamente à abordagem anacrônica do amor gay, mas à dificuldade de extirpar a cólera do meio mergulhado em agressividade, fundado sobre as bases do patriarcado.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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