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Crítica


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Sinopse

Em Tempo Suspenso, dois casais ficam juntos numa casa de campo por conta do confinamento necessário durante a pandemia da COVID-19. Essa convivência permeada por tensões e medos é marcada por consecutivas revelações.

Crítica

A grande questão no que diz respeito a eventos históricos transformadores é o grau de envolvimento daquele que se dispõe a estabelecer um relato com o tema a ser descrito. Ou se está no meio de tal situação – e, portanto, o que será possível de entrega é não mais do que um extrato reducionista, baseado naquela experiência pessoal e nada mais – ou se faz necessário um distanciamento (quanto maior, mais preciso), pois os impactos do ocorrido ainda se farão recentes para revelarem sua extensão e consequências. A pandemia do covid-19 é um bom exemplo desse debate. O cinema tem gerado, desde 2020, uma série de obras “pandêmicas”, por assim dizer, feitas no calor do momento, que servem mais como exemplos das dificuldades impostas pelas restrições sanitárias do que estudos reveladores sobre do alcance do cenário imposto. Tempo Suspenso, de Olivier Assayas, propõe algo distinto. Feito após o momento mais tenso, também não possui o aprofundamento exigido para o tipo de pensamento crítico que poderia elevá-lo a uma posição de referência. Assim, não se mostra válido enquanto ficção, por almejar uma perenidade que nunca lhe é ofertada, mas também desperdiça qualquer senso de oportunidade justamente pela imensa proximidade entre objeto e análise.

Apesar de ter entregado, ao longo de sua carreira, obras que apostavam no dinamismo de suas ações, como a minissérie Carlos, O Chacal (2010) e o thriller Wasp Network: Rede de Espiões (2019), Assayas é conhecido por investir numa vertente que ao longo dos anos tem se mostrado a confirmação do estereótipo quando se pensa em cinema francês: muita conversa e pouca atitude. Tempo Suspenso é apontado pelo realizador como sua obra mais pessoal, ainda que não apresente nada de particularmente novo a quem está habituado a acompanhar os altos e baixos de sua filmografia. A despeito de experimentações mais controversas, como Personal Shopper (2016), que tangenciava o suspense sobrenatural, ou mesmo o embate de gerações com referências a clássicos do cinema (Acima das Nuvens, 2014, uma releitura enviesada de A Malvada, 1950), este seu trabalho mais recente representa uma volta às origens, uma retomada (quase uma sequência) do estilo que marcou o aclamado Horas de Verão (2008) e que seria retomado anos depois em Vidas Duplas (2018). Com estes dois, tem-se uma trilogia informal, que parte de um impacto momentâneo até a reiteração do mesmo, contentando-se em reafirmar velhos olhares, independente dos novos contextos.

Paul (Vincent Macaigne) e Etienne (Micha Lescot, de Sem Palavras, 2018) são dois irmãos que escolheram a casa da família, em um pequeno vilarejo no interior da França, para, ao lado de suas namoradas/companheiras, enfrentarem juntos – os quatro – o período de maior restrição de isolamento social. O primeiro é aquele que está sempre a um passo da paranoia (uso excessivo de máscaras e álcool-gel, receio de se aproximar de outras pessoas, afastamento radical de qualquer tipo de contato externo), enquanto o segundo busca investigar um olhar mais apurado, pensando no impacto daquilo pelo qual estão atravessando e em que grau suas vidas serão afetadas diante desse “novo normal”. Ou seja, um é o Eu, ao passo que o outro é o Nós. Paul não se importa em fazer todos os seus pedidos online, para que a cada dia um novo pacote da Amazon seja deixado em sua porta. Etienne, no entanto, pensa nos trabalhadores que estão sendo expostos para manter o conforto destes refugiados em suas casas, ao mesmo tempo em que reflete sobre a necessidade em se apoiar os pequenos comerciantes locais. Ambos certos, mas também equivocados em diferentes detalhes. Como ajudar o vizinho, se esse também está de quarentena? Por outro lado, há empregados que dependem destes serviços de tele-entrega para manter a si e suas famílias. O sistema está longe, como se vê, de ser justo. Mas a solução, tanto para um caso, quanto para o outro, está ainda mais distante.

Mas o que torna tão pesaroso acompanhar as eternas – e irrelevantes, pois efeito concreto algum são capazes de gerar – discussões entre os personagens de Tempo Suspenso é justamente a sensação circular – seja na prática, como na teoria – que as percorre do início ao fim. O que se tem na maior parte do tempo são dois casais brancos, heteros e privilegiados levantando confabulações a respeito do tudo e do nada, como se o destino de muitos fosse ser afetado por suas conclusões (surpresa? Poucos se importam). Há lembranças de quando eram crianças e das inevitáveis mudanças sociais que o mundo tem enfrentado com ainda mais violência nas últimas décadas, mas são acompanhadas por um viés de pieguice e obviedade que conseguem apenas emular o cansaço capaz de reforçar sua irrelevância (“conhecia todos os vizinhos, hoje com sorte reconheço alguém quando saio à rua”, reflete o protagonista). Se o momento que mais se aproxima de uma verdade reveladora é o vislumbre do quarto materno, afetado pela solidão pós-separação marital, o mesmo não irá se estender por muito, fazendo desse encontro mais um ponto fora da curva do que uma realidade a ser enfrentada e refletida.

Nem tudo é desperdício, no entanto. Também roteirista, Assayas confirma sua habilidade em criar e desenvolver diálogos envolventes, mantendo seus personagens em constante movimento, mesmo diante de um cenário limitado e um assunto reincidente, povoado por idas e vindas que pouco acrescentam a uma reflexão mais elaborada. Mesmo assim, pode se revelar prazeroso observar tantas trocas, providas de intensidade e paixão, a respeito da arte e da vida, do passar dos anos e das heranças que se tornam parte de cada um, querendo esse ou não. Vicente Macaigne, mais do que qualquer outro do elenco, se mostra catalisador dessa hesitação corajosa, por mais contraditório que isso possa parecer, pois tanto é certo de suas convicções como teme pelo momento em que se verá obrigado a colocá-las em teste. Assim como a humanidade diante desse desafio surgido no início da terceira década do século XXI. Em Tempo Suspenso, a impressão é que há muito em jogo. Mas, na verdade, o que se constata no apagar das luzes é o compasso da espera, um aguardar por vezes interminável, que pode ou não levar a algum lugar ou sentimento. Se irá completar ou não tal trajeto, ninguém por aqui parece disposto a descobrir.

Filme visto durante o 74º Festival Internacional de Cinema de Berlim, na Alemanha, em Fevereiro de 2024

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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