Crítica
Leitores
Sinopse
Crítica
Quarta maior ilha do mar Mediterrâneo, a Córsega é o cenário desta produção francesa selecionada para a 45ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. I Comete: Um Verão na Córsega começa com adolescentes fazendo basicamente nada na praça. Logo eles são importunados por um adulto que parece não falar coisa com coisa. Imediatamente depois, jovens adultos conversam calmamente sobre banalidades numa curva estrategicamente escolhida para deixar visível ao longe a beleza da paisagem deslumbrante. O plano fixo garante que todas atenções permaneçam no conteúdo da prosa entre esses personagens que provavelmente estão de passagem pelo lugar onde compartilharam a infância. Há intimidade nos bate-papos, mas também é perceptível certa distância ocasionada pela posterior dispersão por outras localidades. Nada de marcante acontece e o filme vai se desenrolando ao sabor de encontros frugais, sem destaque a possíveis conexões. O roteiro a cargo de Pascal Tagnati (ele que também é o diretor) costura pequenos retalhos para formar um mosaico heterogêneo. É como se assistíssemos a vários curtas-metragens em sequência. Em comum, aparentemente, apenas a localização. E o aspecto mais positivo do longa é a sua capacidade de nos manter presos nessa polifonia, em meio à qual não há ênfases num assunto, mas na ligação orgânica de vários deles.
Algumas conversas são mais sintomáticas do que outras, evidentemente. Quando homens falam mal da situação do futebol europeu, é fácil perceber que em meio às ponderações pretensamente anticapitalistas sobressai um arraigado conservadorismo. Um sujeito afirma que na atualidade não é diferente assistir aos jogos do campeonato inglês e do francês, haja vista que a globalização e o neoliberalismo teriam homogeneizado as disputas. Até aí tudo bem, mas nas frestas dessa manifestação supostamente saudosista reside uma lógica utilizada para atacar movimentos migratórios ou miscigenações. O rapaz diz que é preciso "zelar pelas tradições", por uma maneira regional de jogar futebol. Se aplicada a questões urgentes da nossa contemporaneidade, essa postura corresponderia a um discurso próximo do xenófobo. No entanto, Pascal Tagnati evita habilmente que mesmo essa digressão sirva para o longa-metragem levantar uma única bandeira ou mesmo eleger os vilões e os mocinhos. A encenação quase documental e o modo como as opiniões são diluídas nos levam a compreender que esse posicionamento é fruto de noções profundamente enraizadas. Ele vem de um lugar cristalizado, não de uma reflexão sobre as complexidades sócio-culturais-econômicas. Aliás, se há algo que pode ser captado em quase todas as historietas é uma luta silenciosa entre o passado e o futuro.
A Córsega é enxergada como um lugar idílico propício ao choque entre o que a formatou como comunidade incrustrada nas montanhas e as atuais e inclusivas perspectivas de convivência. Se, por um lado, existem arroubos progressistas, por outro, há diversos resquícios de um jeito ultrapassado/retrógrado/anacrônico de encarar a vida. Exemplo disso é a menina que automaticamente se torna o novo reproduzindo o velho ao “crescer” agressivamente diante de um menino. Ela age de um jeito absolutamente impositivo e desqualifica seu opositor em vez de debater as discordâncias. E o que é pior, a criança faz isso naturalmente, como se a violência validasse a sua autoridade. O conceito do “olho por olho, dente por dente” que o prefeito utiliza para se vingar do homem que “roubou” sua esposa é outro resíduo da cultura petrificada naquele lugar de aspecto milenar. E se neste texto faltam nomes e suas respectivas personalidades, é porque I Comete: Um Verão na Córsega realmente não se esforça para consolidar as singularidades. Há migalhas de personalismo. Poucas figuras sobressaem como o rapaz negro que tem papos com sua avó nos quais o abismo geracional ganha contornos claros. No geral, estamos diante da junção habilidosa de frações das Córsegas de ontem e hoje.
Esse lugar paradisíaco congelado no tempo carrega feridas antigas até a atualidade. E uma delas é a disputa com a França, país que o governa há mais de 240 anos. Os personagens falam predominantemente em francês, mas alguns se comunicam em Corso, língua de origem românica que muitos consideram o mais italiano dos dialetos. Essa tensão é visível num par de trechos, sendo o mais indicativo deles o das crianças atirando ovos num carro estacionado com a placa da França e gritando: “franceses de merda”. Certos segmentos existem para dar respiro à dinâmica territorial/cultural urdida sutilmente. Um deles é a cam girl se masturbando para o deleite de quem se excita do outro lado da câmera. A cena é capturada sem pudores, com a atriz completamente nua e insinuando a autossatisfação sexual de modo convincente – algo que ganha equivalente à frente com o homem acariciando seu pênis ereto em frente ao computador. E essa naturalidade ao encarar o prazer vai ao encontro do realismo que está presente na essência de I Comete: Um Verão na Córsega. Num par de segmentos fica claro que o realizador abriu a câmera no meio de transeuntes desavisados e pediu para os atores interagirem. Não seria surpresa descobrir que houve muito improviso na construção desse painel que pode se tornar enfadonho a alguns por escancarar pouco o seu propósito. Mas ele está lá, nas entrelinhas.
Filme visto online durante a 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2021.
Últimos artigos deMarcelo Müller (Ver Tudo)
- O Deserto de Akin - 24 de novembro de 2024
- Mostra de Gostoso 2024 :: Seminário discute produção audiovisual nordestina - 24 de novembro de 2024
- Mostra de Gostoso 2024 :: Evento potiguar começa com discursos, emoção e casa cheia - 23 de novembro de 2024
Deixe um comentário