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Sinopse

A jornada complexa de uma das maiores cantoras do mundo. Whitney Houston foi do anonimato ao estrelato.

Crítica

Em certo momento de I Wanna Dance With Somebody: A História de Whitney Houston, a protagonista, Whitney Houston – interpretada por Naomi Ackie – demonstrando tédio em frente à televisão, pega o telefone, faz uma ligação e declara: “quero ser atriz. Me arranje um filme”. O que Clive (Stanley Tucci, um dos destaques do elenco), seu empresário, resolve sem grandes complicações. Duas cenas depois, ela entra na sala dele e recebe o roteiro de O Guarda-Costas (1992). Na seguinte já estão no set de filmagens, para em poucos instantes ela se debulhar na performance daquela que se tornou uma das suas canções-símbolo: “I Will Always Love You”. Porém, tão rápido como foi, também se passa para o próximo tópico, e assim por diante.

Este é um bom exemplo, portanto, de como a diretora Kasi Lemmons (a mesma do problemático Harriet, 2019, outra cinebiografia que também minimiza o exemplo de uma mulher negra fundamental para a história norte-americana) e o roteirista Anthony McCarten (que, apesar de suas quatro indicações ao Oscar, é mais lembrado por ter assinado o enredo de Bohemian Rhapsody, 2018, a controversa cinebiografia de Freddie Mercury) encaram a tarefa de narrar a vida e obra de Houston: empilhando um episódio supostamente marcante atrás do outro, sem peso ou relevância conferidos que possam diferenciar um do outro. É um filme-wikipedia, portanto, que não oferece nada de novo aos fãs, pouco serve de intrigante ou mesmo curioso aos recém-chegados e, ao tentar abordar o máximo possível de assuntos, desperdiça ainda qualquer oportunidade de instigar aquele em frente à tela a ir atrás de mais informações a respeito. O que é quase um desrespeito com uma personalidade tão importante quanto a que aqui é apontada.

Como o uso da voz da própria Whitney Houston é empregado em 95% da cantoria ouvida no filme, é de se supor que Ackie tenha sido escolhida para o papel mais por uma semelhança física do que por seu talento vocal. No entanto, o que ela oferece é uma interpretação-cosplay, se mostrando mais preocupada em repetir figurinos, perucas e trejeitos, e menos em recriar uma Whitney por conta própria. Melhor se sai, por exemplo, Clarke Peters (Destacamento Blood, 2020), que, como o pai e responsável pelos negócios da filha, se mostra livre de amarras para oferecer um misto de vilania, controle e afetuosidade que, ainda que por poucos instantes, impressiona justamente pelo que I Wanna Dance With Somebody menos explora: a sutileza. Afinal, tudo é tão reiterativo e insistente, seja nos diálogos ou nas composições visuais, que qualquer feito da cantora acaba, inevitavelmente, se tornando menor, uma vez que esperado. Para se ter ideia, apesar de se passar 2h20min repetindo o quão única ela foi, pouco antes dos créditos finais terem início, um letreiro surge no meio da tela afirmando que “Whitney Houston foi A maior Voz de sua geração” (assim mesmo, com letras iniciais maiúsculas em A Voz). Agora, a pergunta: isso era, mesmo, necessário? O filme inteiro não existe justamente para reafirmar essa visão?

Outra questão incômoda é o modo como escolhem desenvolver uma alegada – e nunca assumida – bissexualidade de Whitney. O primeiro álbum por ela lançado, “Whitney Houston”, de 1985, a tinha na capa com o rosto sério e os cabelos curtos e presos. Esse é um dos indícios que, segundo o filme, supõem que, nessa época, ela era não apenas gay, mas vivendo como um casal, com o conhecimento dos seus pais, com Robyn Crawford, aquela a quem sempre se referiu como “melhor amiga” (e que, hoje, não mais está no armário e vive com a esposa, Lisa Hintelmann). Porém, assim que Whitney começou a fazer sucesso, apesar da decisão das duas em permanecerem juntas – e da cantora contratar a outra como sua “assistente pessoal”, para que não mais se separassem, independente da ocasião – bastou uma conversa com o pai para toda essa ‘determinação’ viesse abaixo. Lemmons faz de Houston, portanto, uma “lésbica de ocasião”. Quando confrontada, diante da amante que declara seu amor, Whitney se justifica dizendo: “mas a Bíblia diz que é pecado, e eu não quero ir para o inferno”. A partir desse ponto, não há mágoa ou ressentimento remanescente entre elas: Robyn passa a atuar apenas como uma profissional com uma tarefa a cumprir, enquanto que a estrela pop se vê diante dos altos e baixos da relação tempestuosa que desenvolveu ao longo dos anos com o também cantor Bobby Brown.

Se abandonar um grande amor de adolescência (assim como suas tendências homossexuais) parece não ter deixado marcas na homenageada, também é esvaziado o seu perfil enquanto artista. Ainda que se declare apenas intérprete, não há uma única cena no filme dela ao lado de um músico qualquer, seja escritor ou compositor. O que se coloca, portanto, é que se tratava de alguém genial – e que, portanto, não necessitava explicações. Isso até pode valer na vida real, mas no campo da ficção, a lógica precisa ser construída, o que não chega a acontecer por aqui. Assim como em nenhum momento ela é vista consumindo drogas – ainda que seja público e notório que a morte dela tenha sido em decorrência do vício que, por mais que tenha tentado, nunca conseguiu se livrar. Essa postura “chapa branca”, sem se aprofundar e ocupada apenas em enumerar a maior quantidade de incidentes de uma jornada marcada tanto por glórias como por frustrações acaba por dominar a narrativa de I Wanna Dance With Somebody: A História de Whitney Houston. Não por acaso, o último número musical da trama é com a canção “I Have Nothing”. Afinal, assim também fica o espectador: com nada.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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