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Crítica


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Sinopse

O edifício mais alto da Europa está sendo construído na Itália nos anos 1960. Do outro lado da Velha Bota, jovens espeleólogos estudam a caverna mais profunda do continente, situada no interior intocado da Calábria.
 

Crítica

Às vezes pode soar um tanto vago dizer que um filme é “atmosférico”. O que determinaria essa característica, ainda mais se ela for utilizada pelo crítico enquanto um adjetivo fundamental da análise? Como Il Buco, uma das produções selecionadas para a 8 ½ Festa do Cinema Italiano 2022, é um filme atmosférico, então se torna importante fazer um exercício para compreender de que modo isso se manifesta. A trama se passa nos anos 1960, quando espeleólogos resolvem explorar uma caverna numa região remota da Calábria, no sudoeste da Itália. E antes desses profissionais chegarem à fenda que exala naturalmente um mistério apelativo à nossa curiosidade, o cineasta Michelangelo Frammartino mapeia a região do ponto de vista poético. A câmera não está ali simplesmente para dar ao espectador uma ideia geográfica do lugar, no sentido da localização (onde A está e como chega a determinado destino). Há a tentativa de capturar aquilo que não se pode mensurar, catalogar, enxergar ou mesmo tornar plenamente resolvido científica e tecnicamente. Então, o realizador se detém na incidência da luz sobre o solo, na integração do casebre montanhês com a encosta (como se dela fizesse parte desde os primórdios), na óbvia relação entre a textura rugosa da testa do idoso e a árvore de tronco igualmente sulcado que lhe serve de companheira de observação. E a utilização do tempo é vital a essa atmosfera, no que diz respeito tanto à duração dos planos quanto ao pensamento sobre passado e futuro.

Il Buco não adere àquela ideia bastante difundida no cinema contemporâneo (sobretudo no de cunho mais abertamente comercial) de que é preciso oferecer ao espectador uma saraivada de informações a fim de que ele não perca o interesse. O longa-metragem italiano funciona mais como um convite generoso à contemplação, à observação cuidadosa marcada por um lirismo evocativo dos enigmas da tradição e da ancestralidade. Sim, pois enquanto os espeleólogos investigam os pormenores de um espaço praticamente intocado pelo homem, Michelangelo Frammartino encara a população local quase como se ela fosse um desdobramento daquela terra. No entanto, a contemplação aqui não é uma operação passiva, está longe de basear uma experiência em que tudo está devidamente posto, restando à plateia compreender o que está sendo dito/mostrado/sugerido. Talvez o grande mérito do filme seja justamente o fato de que essa contemplação é um gesto consequente da construção narrativa que evita didatismos e/ou apontar caminhos inequívocos. Com isso, não doutrina o espectador a respeito de certos enigmas e indeterminações, pois mantém o tom impreciso de algumas relações, então oferecidas como possibilidades. Portanto, mesmo que as imagens tenham uma forte carga retórica, elas dificilmente funcionam como dispositivos para captarmos as coisas apenas de um jeito. Como nas melhores poesias, há a intenção do autor, mas também abertura para a variedade de percepções.

Com pouquíssimos diálogos (que podemos contar nos dedos da mão), Il Buco é evidentemente ficcional, mas se parece deliberadamente com um documentário. Michelangelo Frammartino cria habilmente uma fricção entre os dispositivos notadamente documentais e a reconstrução ficcional (se permitindo liberdades poéticas) da expedição que aconteceu nos anos 1960 a uma das cavernas mais profundas do mundo. É nesse limiar pouco intransigente que a trama acontece, num espaço diegético em que as fronteiras entre encenação e flagrante são borradas para se abolir a ortodoxia das classificações. Nenhum personagem é nominado, a câmera passeia pela vila próxima como se estivesse documentando o cotidiano praticamente imperturbado num lugar ermo. Já as incursões pelo subterrâneo calabrês emulam o interesse científico dos exploradores. Numa jornada lenta, em que o espectador precisa fazer sua parte e não esperar noções, explicações e direcionamentos de mão beijada, as imagens são incumbidas de estabelecer as pontes dialéticas, como quando páginas parcialmente queimadas – recurso para enxergar a profundidade das cavidades – são deixadas para trás como indícios de que finalmente o humano acabou pisando por ali. Frammartino poderia simplesmente situar esses restos como lixo e cravar a crítica. Tudo seria simples. Mas, ao mostrar as imagens de Sophia Loren e John F. Kennedy, personagens proeminentes dos anos 1960, ele remete à reflexão daquele presente.

Ainda dentro dessa composição poética feita de imagens e sons, é importante salientar a noção corpo/terra que Il Buco pontua constantemente. Assim como o casebre parece se fundir com a encosta onde permanece provavelmente desde há muito tempo, as pessoas são encaradas quase como se fossem prolongamentos ou desdobramentos da terra que habitam, também provavelmente desde sempre. Enquanto os espeleólogos adentram cada vez mais na caverna calabresa, o atento pastor que se expressa apenas com um conjunto de sons direcionados aos animais tomba e passa a ser também um valioso objeto de estudo. Seria a enfermidade do homem uma forma de sinalizar que a terra está prestes a adoecer, que a morte do corpo é o prenúncio de uma morte simbólica da terra? O retorno ao passado, então, conteria um quê de amargor em relação ao futuro (que seria o nosso presente)? Para responder a essas perguntas (ou torna-las ainda mais insolúveis), talvez seja interessante pensar na breve cena do povo alienado diante da televisão. A circunstância já atesta uma mudança, afinal de contas aquelas pessoas incorporam em seu cotidiano um aparelho que as transforma. Mas, entre frivolidades e números de dança, homens, mulheres e crianças veem um repórter celebrando a construção de um espigão “moderno”. Enquanto o futuro é ascender aos céus, o passado está encerrado nas profundezas. A oposição gera uma nova camada neste filme de imagens belíssimas e ritmo propício à poesia.

Filmes assistido durante a 8½ Festa do Cinema Italiano, em julho de 2022.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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