Crítica
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Sinopse
Antropóloga contratada por um famoso museu de Berlim, Alma aceita participar de um experimento extraordinário a fim de obter fundos de pesquisa para seus estudos. Durante três semanas ela viverá junto de um robô humanoide, cujo programa a permite se transformar no parceiro dos seus sonhos.
Crítica
O que faz de nós seres humanos? Qual seria o mínimo denominador capaz de atestar nossa humanidade, em diferença dos animais e das inteligências artificiais? Esta questão motiva O Homem Ideal (2021), adaptação literária dirigida por Maria Schrader. A diretora aposta na estrutura da fábula para seguir uma antropóloga que aceita, por pressão da universidade, permanecer três semanas ao lado de um robô desenhado para soar perfeitamente humano. O protótipo seria desenhado para os desejos, necessidades e pulsões da pesquisadora – em outras palavras, um homem ideal. Eles conseguiriam conviver enquanto casal? Dormir juntos, fazer sexo, desenvolver um relacionamento amoroso? Com uma premissa semelhante, Ex_Machina: Instinto Artificial (2014) propôs um suspense sombrio a respeito dos limites éticos de nossa relação com a tecnologia. O filme alemão prefere uma abordagem melancólica – afinal, talvez haja alguma vantagem de conviver com um cérebro artificial dentro de um corpo humano. A cineasta foge ao cautionary tale, ou conto de prevenção sobre os perigos do mundo. Em paralelo, também evita a romantização futurista. Ela prefere refinar suas perguntas a fornecer qualquer tipo de resposta.
Em cerca de 100 minutos, o projeto percorre estilos muito distintos. À primeira vista, aparenta ser uma comédia exagerada sobre as diferenças entre humanos e robôs. Há óbvias piadas com a genitália de Tom (Dan Stevens) e com defeitos de funcionamento na máquina. A cena inicial, no baile de dança de salão repleto de hologramas, nos prepara para uma comédia do absurdo. No entanto, o humor se faz cada vez mais raro conforme o filme avança. A direção divide o ponto de vista entre Tom e Alma (Maren Eggert), demonstrando que ambos podem ser igualmente solitários: tanto a mulher trabalhadora e descrente nos benfeitos tecnológicos quanto o robô que apenas deseja agradar a sua humana. O terço central fornece um contraponto à alegria do início, como se o roteiro efetuasse sua própria demonstração científica em tese (os robôs enquanto elementos de comédia), antítese (robôs servindo ao drama), e finalmente a síntese (o uso destes para uma reflexão filosófica capaz de ultrapassar os gêneros). O percurso realizado por Schrader pode soar inconsistente, ou possivelmente as piadas e lágrimas constituam a base necessária para se chegar às ricas reflexões da parte final. A premissa aparentava se encaminhar a uma das duas opções: humano e humanoide ficam juntos, ou se separam para sempre. O projeto, muito inteligente, foge às armadilhas e constrói um caminho alternativo.
Tamanhas variações de tom poderiam constituir um obstáculo ao elenco que, no entanto, se sai igualmente bem em todos os registros. Dan Stevens, ator habituado a comédias, dramas e ficções científicas, encarna a inteligência artificial com um misto de gentileza e leve aparência mecanizada. Ele busca, por si próprio, uma composição capaz de despertar dúvidas a respeito da humanidade de Tom, brincando com o olhar, a postura e os gestos levemente rígidos. Maren Eggert possui poucos diálogos face a este objeto estranho em sua casa, que ela adota como quem leva um cachorro ou planta para casa. A atriz apresenta uma infinidade de sensações no rosto silencioso, que vão da indignação à raiva, passando pela tristeza, o desejo e a descrença. A interação entre ambos se desenvolve de tal modo que jamais sabemos quem detém o poder entre eles. Os atores evitam ridicularizar os personagens: tanto o elenco quanto a direção demonstram profunda ternura pelos dois. É interessante que Alma constitua uma mulher cética e racional, fugindo à tendência de simpatizar com o homem-simulacro dentro de casa. Teria sido fácil fornecer o Dom Juan eletrônico a alguma mulher carente, porém vende-se a ilusão do amor a quem não o deseja.
Enquanto ficção científica, o projeto tem a astúcia de evitar explicações pseudo-científicas, além de demonstrações complexas a respeito da criação de Tom. O personagem chega pronto a Alma, calibrado previamente aos gostos da funcionária do museu. A magia está ausente deste contexto (o personagem não possui qualquer força ou qualidade sobre-humanos), assim como a ideia de uma revolução espetacular ou perigosa. Os humanos interpretam a chegada do robô como quem compra um rádio inteligente, ou um destes dispositivos capazes de acender as luzes de casa – em outras palavras, o fantástico e o real convivem sem sobressaltos. Para Schrader, mais interessante do que tratar Tom como um monstro de Frankenstein seria introduzi-lo no mundo sem qualquer alarde. Ora, se a criação possui alto grau de passabilidade humana, o que nos permite distinguir seres biológicos daqueles criados em laboratório, quando passeamos na rua? Devemos sentir pena ou indiferença diante deste personagem quando é relegado a um armarinho para dormir? O filme também coloca seu interlocutor à prova pela qual passa Alma. Somos capazes de nos identificar com alguém dotado de sentimentos assumidamente falsos? O projeto questiona nosso desejo de ficção, ou ainda a nossa capacidade de colocar a fé (a vontade de crença) acima dos fatos. Em tempos de domínio das fake news, o questionamento se faz bastante relevante.
Além disso, O Homem Ideal rompe com padrões da ficção científica (as cores são quentes, próximas do sonho, ao invés do azulado e dos vidros translúcidos típicos do gênero), do romance (a inevitabilidade do sentimento amoroso) e da comédia (o imperativo da inconsequência). Ele se converte numa experiência curiosamente minimalista, introspectiva, como não se esperaria de uma fábula com esta temática. Em última instância, Alma luta pelo direito de ser feliz sozinha: “Quem disse que toda mulher está procurando por um parceiro?”, ela contesta. A avaliação da estudiosa a respeito da interação com Tom, revelada apenas no final, possui uma complexidade notável. No desfecho, o filme agridoce converte-se em provocação discreta. Schrader busca plantar no espectador dúvidas a respeito de seus gostos, enquanto fornece possíveis caminhos para a interpretação: o ser humano seria aquele capaz de produzir poesia, como os povos de 3 mil anos atrás, pesquisados por Alma? Ou aquele capaz de sentir a poesia? O que a criação de dispositivos para atender a todos os nossos desejos nos diz sobre a sociedade contemporânea? A exemplo das melhores ficções científicas, o filme utiliza a metáfora do humanoide para discorrer sobre nós mesmos. A pós-modernidade é colocada no espelho para perceber a imagem grotesca devolvida pelo reflexo.
Filme visto online no 71º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em março de 2021.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
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Bruno Carmelo | 7 |
Daniel Oliveira | 7 |
Chico Fireman | 7 |
Ailton Monteiro | 7 |
MÉDIA | 7 |
Arthur, pensei na mesma coisa quando assisti. Este filme não tem um tom de alarde quanto à tecnologia: o receio da diretora é ver o ser humano imerso numa sociedade onde tudo precisa atender os nossos desejos.
Me lembro daquele episódio de Black Mirror que o marido falecido volta como um robô humanóide, fico curioso por qual o tom desse, se buscam refletir as mesmas coisas