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Crítica


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Onde Assistir

Sinopse

Determinadas a jogar futebol profissionalmente, jovens desafiam a proibição imposta a mulheres que desejam praticar o esporte. O caminho para serem reconhecidas como cidadãs é árduo e eventualmente tem humor.

Crítica

Impedimento em Cartum (2019) é um filme proibido sobre uma prática proibida. No Sudão, as leis islâmicas não permitem às mulheres fazerem cinema, nem jogarem futebol, sob pretexto que isso as “desviaria das atividades femininas” e “incentivaria comportamentos agressivos”. O argumento interpreta o controle sobre as mães, esposas e irmãs enquanto forma de proteção à integridade e à saúde. A diretora saudita Marwa Zein explicita desde os letreiros iniciais a coragem de si mesma e de suas personagens, que sonham em formar uma equipe feminina de futebol para disputarem os campeonatos internacionais da FIFA. As punições pela afronta às regras vão desde ameaças veladas até confisco de passaporte e chibatadas. É tentador, neste caso, valorizar o filme por sua existência: esta é uma obra de modestas proporções, onde a diretora também desempenha as funções de produtora e diretora de fotografia, correndo um risco considerável em nome da arte e do direto das mulheres. O discurso é voltado menos aos sudaneses do que à comunidade internacional. “Nossa ambição é mostrar para o Sudão e o mundo inteiro que há meninas que jogam futebol”, afirma a treinadora, ecoando o discurso do projeto como um todo.

Deste modo, assume-se uma posição menos explicativa do que informativa: a cineasta supõe que tanto o cinema quanto o futebol sudanês sejam desconhecidos pelo público, cabendo em primeiro lugar alertar sobre a sua existência, ao invés de propor alternativas de superação do problema. O documentário limita-se a apresentar as jogadoras, conversar com cada uma delas nos bastidores dos treinos (secretos, claro) ou quando se reúnem num bar para comentar a Liga dos Campeões e criticar o esquema tático do Barcelona. Essas mulheres demonstram verdadeira paixão pelo futebol, assistindo a todas as partidas e brincando com aplicativos de futebol no celular. Ainda que respeitem a religião, priorizam o desempenho em campo, razão pela qual vestem shorts e retiram o véu durante os treinos, enfrentando regras esperadas do comportamento feminino. Em oposição ao posicionamento contra o sistema, o machismo e a opressão, o filme privilegia o discurso a favor do esporte e da concretização dos sonhos de qualquer indivíduo. Existe um enfrentamento político evidente no ato de se expor a riscos pelo prazer do esporte, porém o roteiro ressalta o fato de o fazerem por amor, não por ódio.

Zein oferece uma narrativa inesperadamente divertida para um tema tão árido. As escolhas de roteiro e montagem valorizam cenas do grupo sorrindo, se provocando, fazendo chacota do lance ruim de uma colega ou provocando amigavelmente a garotinha de dez anos de idade que pretende ter filhos, mas não se casar. Os raros relatos de violência explícita, incluindo chicotadas e espancamento de um tio, são narrados com leveza pelas mulheres para quem o castigo representa um abuso, mas não uma novidade. É difícil não reconhecer nosso olhar ocidental diante desta realidade onde a naturalização da violência soa ainda mais violenta do que o espanto diante da mesma. A articulação do material bruto poderia ter escolhido cenas mais fortes se quisesse: percebe-se a supressão de instantes agressivos às vésperas de começarem. A direção prefere a postura positiva diante das adversidades ao sofrimento provocado por elas. A escolha talvez se justifique pela tentativa de tornar o resultado acessível, circulando por meios mais amplos do que o circuito de arte. Em se tratando de uma produção sudanesa e de uma diretora iniciante em longas-metragens, a respeito de grupos não-autorizados, compreende-se a preocupação com o alcance do discurso em detrimento da profundidade.

Em paralelo, a construção estética de Impedimento em Cartum é simplicíssima. Por um lado, a intimidade com as jogadoras promove boas conversas descontraídas, incluindo brincadeiras com a própria cineasta. Por outro lado, Zein se depara com limitações estruturais, enquadrando sozinha, deixando a luminosidade estourar dentro dos planos, perdendo o foco da entrevistada, e abrindo os enquadramentos excessivamente para abarcar mais ações na mesma imagem caso as personagens se movam. A aparência de espontaneidade constitui um valor, já a dificuldade de controlar a dinâmica de grupo se traduz numa limitação. No clímax, é introduzida abruptamente a eleição de uma nova representante feminina ao comitê de futebol do Sudão, transformada em conflito central. Entretanto, o resultado do pleito não surte qualquer efeito na história, positivo ou negativo, deixando a impressão de um dilema mal abordado, que poderia ter sido eliminado pela montagem caso a criadora não temesse ficar aquém da duração mínima para um longa-metragem. Há diversas ideias válidas de conflito (a eleição, a aquisição do terreno, o encontro com uma equipe do Sudão do Sul) que não se concretizam em imagens.

Em compensação, propostas poéticas sobre as atletas “confundidas com homens”, segundo os relatos, aprofundam o olhar múltiplo à feminilidade. A sequência da nudez das personagens à janela, com a luz filtrada por cortinas, proporciona uma ousadia inesperada, assim como imagens de crianças admirando o treino e andando com as carroças nas ruas. Zein consegue olhar para o país como um todo, analisando de que maneira os entraves à autonomia feminina estão ligados a atrasos estruturais maiores, tanto econômicos quanto políticos. A autora nunca sugere que o problema seja específico do futebol, apropriando-se deste caso enquanto exemplo anedótico de um contexto amplo. Por isso, torna-se fácil ao público se identificar com as jogadoras e com as demais sudanesas pioneiras, elencadas didaticamente durante os letreiros. Por este ponto de vista, compreende-se que os jogos sejam filmados raramente, por ângulos restritos. A limitação se assume enquanto linguagem estética: o documentário transmite tanto pelo que nos mostra quanto pelo que não consegue mostrar, porém ao qual acena durante a narrativa. Buscando funcionar enquanto porta de entrada a um universo particular, ao invés de discussão complexa sobre o mesmo, cumpre seus objetivos.

Filme visto online na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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CríticoNota
Bruno Carmelo
7
Chico Fireman
6
MÉDIA
6.5

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