Crítica
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Sinopse
Em meio aos ensaios de um espetáculo que aborda a homoafetividade negra, o Coreógrafo constrói uma amizade com Pedro, jovem negro que não se identifica como menino.
Crítica
No início, a imagem da aproximação entre dois corpos masculinos poderia se prestar tanto à luta quanto ao sexo. Uma luz estroboscópica vermelha dilui as definições, ao invés de esclarecê-las: o curta-metragem privilegia o registro das sensações ao da racionalidade. Quando se estabelece uma atração entre esses dois homens, percebe-se então se tratar da coreografia para um espetáculo. Somos apresentados primeiro à ficção, à criação artística, para depois descobrirmos as pessoas por trás da dança, com seus corpos cansados e pés cheios de bolhas. O diretor Anderson Bardot trabalha uma narrativa elíptica, em camadas, onde a conexão entre cenas se dá menos pela cronologia ou por relações de causa e consequência do que pela afinidade discursiva.
O discurso, no caso, aborda a homoafetividade, sua expressão dentro da arte, o racismo institucional, a transmissão entre gerações e a possibilidade de identidades de gênero fluidas e/ou não-binárias. O material pode parecer ambicioso demais para um curta-metragem, porém os criadores tomam a precaução de evitar o didatismo, privilegiando as livres associações, como num fluxo de ideias. A leitura de jornais da época da escravidão, escancarando a “normalização” da compra e venda de pessoas, entrecorta-se com cenas contemporâneas, ao passo que instantes naturalistas (os ensaios de dança, o recreio dos alunos na escola) se alterna com performances próximas do sonho, a exemplo das mãos douradas compondo o cenário de apresentação para o bailarino negro. É muito interessante que, para denúncias sociais tão pungentes – a cena do garoto sendo cuspido pelos colegas é particularmente brutal -, a estética escolhida ainda seja aquela da fantasia, ou pelo menos do imaginário, de uma existência alternativa. Existe evidente otimismo por trás deste retrato duro.
Parte desta crença no futuro provém da capacidade de transmissão de conhecimento, com personagens negros servindo de exemplo aos demais. Forma-se uma triangulação entre o dançarino veterano, na posição de professor, os bailarinos contemporâneos e o jovem não-binário que pretende seguir o caminho da dança. É preciso que os pioneiros corajosos ocupem espaços inéditos para que as gerações futuras desfrutem suas posições merecidas e abram, por sua vez, novas vias aos demais. A arte e o conhecimento andam lado a lado nesta exploração da (auto)aceitação por meio da inserção social. Bardot nunca imagina que os personagens apenas se sintam bem consigo mesmos, numa realização autossuficiente: eles precisam existir dentro de um contexto social, nos palcos, nas ruas, ao alcance de todos. O turbante do garoto, a conotação abertamente sexual da coreografia dos bailarinos profissionais permite sugerir uma vivência aberta e orgulhosa de sua identidade e seus desejos.
Quanto à dança, ela fornece os momentos mais belos do filme. Inabitáveis tem a boa ideia de brincar com uma movimentação repetida, levando-a às igrejas, ao topo das comunidades, ou seja, nos locais onde indivíduos LGBTQI+ ainda sofrem maior preconceito. Esta ocupação urbana ocorre por meio do afeto e da arte, condensada na dança dos protagonistas. Em paralelo, nota-se os passos da dupla espelhados na performance muito mais brutal, áspera e raivosa, do aspirante a bailarino, sob a chuva, no palco que conseguiu ocupar até o momento. A câmera faz do espectador uma plateia privilegiada para esta apresentação solitária. O roteiro ainda tem a deliciosa ousadia de colocar um carro de polícia involuntariamente fornecendo os holofotes para o garoto brilhar. O curta-metragem explora muitíssimo bem a combinação entre estética e reivindicação política, ou ainda entre o naturalismo e a fantasia.
Filme visto na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2020.
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