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Sinopse

Nascido na China, Lanny Gordin fez carreira como músico no Brasil, durante as décadas de 1960 e 1970. Neste período, trabalhou em discos e shows de ícones da música popular brasileira. O ostracismo veio no final da década de 1970, associado ao desenvolvimento de esquizofrenia.

Crítica

Após assistir a este documentário, fica evidente a admiração do diretor Gregório Gananian pelo músico Lanny Gordin, conhecido sobretudo pela importância enquanto guitarrista da Tropicália. No entanto, é com alívio que se percebe a capacidade do projeto em fugir às armadilhas típicas deste formato. Os filmes-homenagem, especialmente documentais (ainda mais com o biografado vivo, à disposição do projeto) correm o risco de sucumbir à modéstia ou admiração excessivas: são inúmeros os casos em que a estética se rebaixa para permitir ao protagonista controlar a narrativa, dizer sobre si apenas aquilo que desejar, do modo que desejar. O tom solene se vende como forma de respeito; o formato convencional torna-se uma maneira de não sobrepor a autoria do diretor àquela do ídolo retratado. Ora, Gananian joga de igual para igual com seu personagem, propondo uma forma de arte, digamos, compartilhada e retroalimentada pelo estilo pessoal de cada um.

O cineasta parte da acepção básica de que não seria possível fazer um filme convencional sobre um artista tão alheio às convenções. Gordin se define como um “free total”, além de não colar a si mesmo o rótulo de músico, e sim de música. “Eu me transformei em música”, ele afirma. “Todo som é música”, completa adiante, enquanto rege imaginariamente os ruídos da cidade. Lanny Gordin está em busca de uma forma de sublimação constante, seja pela arte (a ligação com a poesia, a dança, a performance), pela loucura (ele já foi internado em instituições psiquiátricas, e discorre a respeito do “lado bom da loucura”, este “estado superior” do ser humano) ou ainda pelo transcendental religioso, combinação dos poderes da natureza com a crença de que a música levará “ao universo” e que ele, uma vez morto, poderá se tornar um deus. Gordin constitui menos um artista no sentido de profissional do que um emaranhado de ideias, conceitos e utopias relacionados à arte.

Inaudito busca uma forma de acompanhar este fluxo ininterrupto de pensamentos. O diretor utiliza imagens de ponta cabeça, de trás para frente, reflexos em superfícies que distorçam o personagem, o som dissociado da captação de imagem, a abstração (tintas escorrendo pela superfície) e muitas outras sugestões de que Gordin não é uma mente pensante como as outras, portanto, precisaria de uma estética capaz de representar sua singularidade. O grande mérito do projeto se encontra na montagem ao mesmo tempo inventiva e bastante coesa do início ao fim. As sucessivas escolhas de distorção poderiam resultar em meros tiques da direção, porém Gananian, diretor e montador, garante que as cenas inusitadas possuam tempo de se desenvolver, seja em silêncio ou com sons sobrepostos. Quanto mais se observa a música curiosa de Gordin, ou sua passagem pela China (país onde nasceu), mas se compreende o pensamento do artista. O retrato não opera de maneira linear, tampouco na chave de causa e consequência, e sim através de inúmeras alusões funcionando como peças para articular um personagem fascinante.

Esta estrutura peculiar faz com que o resultado rompa a pressuposição de comprovação pela imagem, ou de registro histórico, que se costuma atribuir aos documentários. O diretor e seu personagem estão pouco interessados em traçar um panorama convencional da trajetória artística, preferindo buscar a ideia da inspiração, ou registrar o processo de criação ao vivo do guitarrista. Ao invés de tentar compreender Lanny Gordin pelo que já fez, o filme busca representá-lo pelo que é, pela imagem que demonstra, pelo modo único de agenciar palavras e ideias. Neste sentido, as descrições lúdicas do personagem sobre sua relação com a música correspondem muito mais à sensibilidade chinesa do que ao pragmatismo ocidental, razão pela qual o retorno às raízes se torna fundamental para refletir sobre a música produzida por ele. Jards Macalé, Helena Ignez e Negro Léo são alguns dos artistas que contribuem, cada um com sua arte, para estabelecer um eco entre o protagonista e outras referências vanguardistas. Sem introduzir um diálogo explicativo qualquer, o artista é representado unicamente por meio de sua arte.

Inaudito termina por constituir uma viagem sinestésica por diversas artes, experiência do espaço (os países, as locações inusitadas pelas quais Gordin transita) e do tempo (os silêncios, a discussão constante sobre a finitude e a morte). O título se torna apropriado em seus dois sentidos, seja aquele de inaudito enquanto algo ou alguém “de que jamais se ouviu falar, de que não existe exemplo” ou “que é extraordinário, incrível”. Estaríamos diante de um gênio, de um louco? De ambos? O projeto evita qualquer rótulo que prenda Gordin a uma corrente específica. Gananian deixa que o guitarrista discorra livremente sobre suas sensações, ainda que mantenha firmes as rédeas de sua estética etérea, próxima de um sonho ou delírio pessoal. Em alguns momentos, chega a evocar Sem Sol (1983) de Chris Marker, obra-prima sobre o valor da memória e da representação, igualmente articulada através de imagens dispersas, de narrativas não-explicativas e de uma busca sobre essência das coisas no Oriente. O documentário conquista a proeza de ser ao mesmo tempo sobre seu protagonista, mas também com ele – e sobre a música, as imagens, os pensamentos. Gordin se torna um exemplo, um ponto de partida, ou ainda um processo fluido, incontrolável. Um free total.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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