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Sinopse

Revolucionária por natureza, Indianara Siqueira lidera um grupo de mulheres transgênero que lutam pela própria sobrevivência em um lugar tomado por preconceito, intolerância e polarização. Desde disputas partidárias até o puro combate contra o governo opressor, a ativista de origens humildes passou por uma longa trajetória até se tornar ícone do movimento.

Crítica

Cientes da enorme potência de Indianara Siqueira, ativista transexual, paranaense de nascimento, mas radicada atualmente no Rio de janeiro, os diretores Aude Chevalier-Beaumel e Marcelo Barbosa extraem das diversas atuações dessa protagonista o sumo de uma luta árdua por dignidade humana. Dona de uma personalidade forte, a mulher de semblante constantemente carregado pelas adversidades, de cotidiano entrecortado por um sem número de reveses, devota sua vida a equilibrar uma balança geralmente pendente à dimensão masculina, heterossexual, cisgênero e branca do mundo. Tudo que diverge desse padrão imposto secularmente pela força é tido como pária, existente à margem das resoluções e da desigual distribuição de poder. Indianara é um documentário ancorado nessa intensidade urgentemente canalizada para resistir aos avanços do obscurantismo. Se para alguns tal ato/verbo é apenas nobre, à Indianara ele se impõe como necessidade cotidiana a fim de atingir a manutenção de direitos, de garantir sua pura sobrevivência.

Indianara oferece, quase que integralmente em seu percurso marcado por uma mescla sensível de desilusão e esperança, o contexto da militância da, entre outras coisas, dirigente da Casa Nem, lar de acolhimento de travestis e transgêneros, cuja principal função é fornecer lar, comida e aconchego à população absolutamente vilipendiada sob o nariz da coletividade que prefere fazer vista grossa e ouvido de mercador. Os realizadores acompanham os caminhos de Indianara pelos espaços ocupados, tanto íntima como publicamente. A política se torna, naturalmente, um elemento intrínseco da pegada que sublinha essa coragem. Confrontar um tecido social desfavorável às parcelas, primeiro, tornadas invisíveis e, segundo, apartadas das pautas discutidas publicamente, inclusive pelas lideranças autointituladas de esquerda, é um caminho trilhado. O documentário questiona, então, até a ambiguidade dos movimentos que abraçam as causas LGBTQ, contudo sem colocar a mão na massa quando a gente vulnerável precisa de amparo.

A tragédia que vitimou Marielle Franco, vereadora carioca covarde e brutalmente assassinada em 2018 – as circunstâncias do crime, passado mais de um ano, ainda não foram devidamente esclarecidas – surge em Indianara como um indício das engrenagens espúrias contra as quais a protagonista precisa se debater diariamente. O entorno vil faz com que as militantes se imbuam de um espírito de enfrentamento e, ocasionalmente, agressividade. Indianara é esquadrinhada pela câmera de Aude Chevalier-Beaumel e Marcelo Barbosa como uma leoa defendendo filhotes, neste caso os transexuais que acabam se abrigando sob suas asas. Nessa selva, em que a sonegação das garantias de cidadania aos LGBTQ é insuficientemente mencionada por vozes dissonantes da maioria condicionada por moralismos e afins, a mulher penhora a paz e a segurança pessoal em função daquelas que padecem. Além disso, a convivência com o marido traz à tona os afetos como antídoto/emplastro à brutalidade.

Em cena, Indianara parece um animal ferido, pronto para atacar e, eventualmente se sacrificar, se isso significar a salvaguarda da integridade da "prole" por ela inspirada e empoderada. De prontidão para qualquer eventualidade, seja em seu benefício ou de tantas que sofrem o pão que o diabo amassou, precisa se endurecer para suportar o peso que lhe sobrecarrega as costas. Sem abdicar da ternura, algo evidenciado nos momentos com o cônjuge Maurício, ex-militar conservador e católico, e nas interações da protagonista com as moradoras da Casa Nem, Indianara é efetivo pela proximidade de uma figura que, por sua vez, simboliza causas invisibilizadas. Há alguns instantes lancinantes e bastante significativos. Um deles, o cortejo fúnebre da companheira que tombou definitivamente. Emocionada, assim como no velório público de Marielle Franco e logo depois do anúncio eleição presidencial de Jair Bolsonaro (a cena mais intensa), Indianara esbraveja contra o preconceito. Calcado nessa personagem impetuosa, o filme é mobilizador, gerando empatia e indignação, abalando determinadas estruturas a partir da força quase incomensurável da protagonista.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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