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Sinopse

Em 1978, Ron Stallworth, um policial negro do Colorado, conseguiu se infiltrar na Ku Klux Klan local. Ele se comunicava com os outros membros do grupo através de telefonemas e cartas, e quando precisava estar fisicamente presente enviava um outro policial branco no seu lugar. Depois de meses de investigação, Ron se tornou o líder da seita, sendo responsável por sabotar uma série de linchamentos e outros crimes de ódio orquestrados pelos racistas.

Crítica

Há um dado absolutamente insólito na trama de Infiltrado na Klan. O fato do policial Ron (John David Washington) lograr êxito em infiltrar-se numa das organizações supremacistas mais antigas e influentes dos Estados Unidos, a fim de monitora-la, seria simples se ele não fosse negro. Para atender a obrigação de fazer-se presente em reuniões repletas de demonstrações preconceituosas e planos para erradicação de raças consideradas inferiores, com intuitos de investigação, ele recorre ao colega Flip (Adam Driver), então o corpo do personagem criado à distância. Essa premissa poderia soar inverossímil, não fosse baseada em fatos. O cineasta Spike Lee potencializa a excepcionalidade da situação-base, sublinhando jocosamente as dinâmicas estabelecidas entre o homem da lei e os encapuzados afeitos a queimar simbolicamente cruzes e vociferar contra a miscigenação. O discurso messiânico, como se os brancos levassem a vontade de Deus num estandarte (manchado de sangue), também está presente. "Ignoram" que a América é fruto da mestiçagem.

Pode-se dizer que Infiltrado na Klan é um filme bastante engraçado, com diversos momentos propensos até às gargalhadas. Isso, a começar pela forma como Ron "encarna o papel", depondo contra a própria raça, dizendo impropérios não entendidos pelos interlocutores telefônicos como tais, pelo contrário. Esse processo fundamenta o absurdo. Os integrantes da KKK reafirmam uma visão de mundo deturpada, mesquinha, que expõe um manancial de ressentimentos e brutalidades sob o véu de uma diligência patriota. Todavia, embora a graça perpasse habilmente a narrativa quase de maneira integral, há sempre dados alarmantes em jogo. Outro ponto abordado com veemência pelo experiente realizador é a consciência de pertencimento, algo que pode ser visto tanto em Ron quanto em Flip. O primeiro é "atingido" desavisadamente durante uma reunião com um líder dos Panteras Negras. É de uma beleza sintomática o instante em que ele se vê impelido a repetir palavras de ordem. O segundo se “descobre” judeu diante daqueles que desejam ver sua linhagem morta.

Na medida em que avança, Infiltrado na Klan vai ganhando gravidade, incorporando uma visão solene e contundente, destituída gradativamente do filtro da comédia. A transição se dá organicamente, sem solavancos ou algo que os valha. É como se, passada a fase de deflagração do ridículo inerente às agremiações preconceituosas, fosse urgente lidar com o real perigo de tudo aquilo. Uma das sequências mais bonitas e avassaladoras do filme é quando Spike Lee apresenta uma montagem paralela que coloca, de um lado, os membros da Ku Klux Klan reunindo-se em torno do ódio, reproduzindo formulações discriminatórias, enquanto, do outro, uma quase centenária testemunha discorre sobre o episódio de um corpo negro brutalizado em praça pública para o deleite dos espectadores (brancos) que chegaram a vender fotos da selvageria como insígnia turística. A realidade não está presente apenas na inspiração do enredo, mas nesses exemplos instrumentalizados como indícios praticamente irrefutáveis da intolerância estadunidense.

Infiltrado na Klan equilibra habilmente seriedade e graça, constituindo-se como uma obra importante e vigorosa, especialmente na atualidade, em que os discursos supremacistas voltaram a ganhar força. Os personagens são cativantes, sobretudo os que passam por processos de transformação irreversíveis e ganham a ciência da importância de resistir bravamente. O longa oferece uma belíssima reconstrução de época, caracterizada pela trilha sonora e a direção de arte, que remontam com acuidade aos anos 70. Há, ainda, menções pontuais e excelentes ao blaxploitation, a essa manifestação cinematográfica orgulhosamente afrodescendente. Aliás, o cinema é protagonista em certa altura, na crítica feroz a O Nascimento de uma Nação (1915), cujas cenas de perseguição e morte da população negra eriçam a Ku Klux Klan, exatamente a mesma tratada, na ocasião, por D. W. Griffith como um lugar de heróis. E, para arrematar com chave de ouro, novamente o acesso à verdade, num encerramento poderoso que convida às lágrimas de dor e indignação.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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