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Crítica


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Sinopse

Odette é uma menina de 8 anos que adora dançar e desenhar. Por que deveria desconfiar de um amigo de seus pais que se oferece para "fazer cócegas" nela? Anos depois, já adulta, ela percebe que foi abusada e mergulha de corpo e alma em sua carreira como dançarina ao tentar lidar com seu passado.

Crítica

Em Inocência Roubada, o processo de reconciliação de Andréa Bescond – aqui intérprete da própria história, além de diretora ao lado do marido Éric Métayer – consigo própria passa pela fabulação de uma realidade marcada por abusos sexuais. Quando criança, antes de completar dez anos, ela começou a ser molestada pelo amigo de seus pais, pedófilo que permaneceu factualmente impune por décadas. A arte é, então, essencial nesse recorte inventivo, principalmente, em virtude do entrelaçamento de rememorações distintas, entre elas as profilaticamente adulteradas. Às vezes, mesmo retorcido pela cineasta, o passado é não menos cortante. A dança, vital à trajetória da menina que corre atrás do seu sonho, para isso mudando-se a Paris na pré-adolescência com o intuito de se tornar bailarina, atua no exorcismo dos demônios e para a demonstração visual da catarse proporcionada pelo expurgo gradativo de lembranças repletas de fortes nódoas e traumas.

Inocência Roubada encara um tema espinhoso de maneira criativa, prezando pela engenhosidade do discurso, evitando operar num tom meramente de denúncia. Odette (vivida por Cyrille Mairesse na infância e Andréa Bescond quando adulta) é silenciada pelos ardis do sujeito que lança mão de eufemismos a fim de esconder o caráter pernicioso de seus crimes. Desse modo, se refere ao ato de tocar indevidamente as partes íntimas da criança como “fazer cócegas”. O filme mostra, sem esquematismos, a dificuldade da pequena ao lidar com aquilo, especialmente porque não se sente à vontade para revelar aos pais o acontecido. Especialmente a mãe, Mado (Karin Viard), é uma figura beirando a tirania, sempre cobrando a protagonista exageradamente, demonstrando-se arredia aos desejos da filha. Já o pai, Fabrice (Clovis Cornillac), é desenhado com ternura, adiante encarregado de oferecer suporte às revelações da violação hedionda praticada. Ambos são projeções.

O que confere singularidade à Inocência Roubada é a forma como Andréa Bescond e Éric Métayer cerzem as memórias permeáveis às intrusões da protagonista e da psicóloga. Com frequência, as duas atravessam literalmente uma reminiscência para comenta-la, fazendo-se fisicamente presentes na instância abstrata. É um artifício funcional, no mais das vezes relevante à compreensão da elaboração íntima das angústias. Todavia, especialmente no miolo do filme, quando os cineastas se afastam ligeiramente do abuso para centralizar os estilhaços, ou seja, o desenvolvimento de Odette como uma adulta sentimental e profissionalmente errante, esse dispositivo acaba servindo somente a reiterações, perdendo um pouco de sua pungência. Há pontuais radicalizações, vide a falsa visita aos Estados Unidos, com direito a agrado virtual para o amigo que, na verdade, cumpre pena por tráfico de drogas. Porém, geralmente o recurso é reinserido sem tantas variações.

Esse entrecruzamento de recordações, recriações e liberdades tem dois efeitos colaterais. O primeiro deles é desviar o filme das convenções, especialmente as que tangem ao crescendo. Em Inocência Roubada, a sucessão lógica estabelecida pelo quarteto “violência inominável, continuidade angustiante, sensação de impunidade e revelação corajosa” acontece entremeada por uma autonomia do ser a partir da capacidade (bem desenhada na telona) de edificar cenários para melhor suportar o peso das dores. O segundo dos resultados, este menos positivo, é a constante sensação de dispersão que toma o conjunto de assalto, não necessariamente dirimindo a carga dramática do relato, mas a deslocando a uma posição secundária diante da importância da metodologia. O filme ganha peso considerável nos momentos de confronto direto, como quando a mãe diz “tudo isso por causa de uns dedinhos na xoxota”, desdenhando da dor alheia e, portanto, a perpetuando.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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