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Crítica


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Sinopse

Alice e Céline são melhores amigas, assim como os filhos de ambas. Um trágico acidente, no entanto, coloca em xeque essa cumplicidade, pois a amizade dá lugar à culpa e a harmonia cede terreno à paranoia.

Crítica

A premissa desse suspense possui forte potencial. Duas mães são também donas de casa, melhores amigas e vizinhas. Elas moram em casas idênticas, geminadas. Ambas têm filhos pequenos, da mesma idade, que são melhores amigos. Até o dia em que, devido a um acidente, uma das crianças morre, diante dos olhos da mãe alheia. Nasce um estranho sentimento de assimetria entre as personagens que pautavam sua felicidade no espelhamento alheio. A mãe em luto começa a pensar que a outra poderia ter feito mais, evitado a tragédia. Esta, a testemunha, passa a acreditar na própria culpa, além de se sentir mal (injusta, excessiva) por ter um filho vivo. Em menos de dez minutos, as duas se adoram, se separam, se invejam e se odeiam. Está armado o palco para um interessante suspense psicológico através da culpa atribuída às mulheres e à culpa cristã de modo geral.

Ora, o diretor Olivier Masset-Depasse não acredita que este conflito baste para desenvolver suas personagens, e trata de introduzir outros – muitos, muitos outros. Em apenas 90 minutos, uma dezena de mortes ou quase-mortes ocorrem na trama, apenas diante dos olhos martirizantes das duas mães. Elas se amam numa cena, se detestam na cena seguinte, suspeitam da culpabilidade uma da outra, apenas para fazerem as pazes pouco depois. Os homens estão convenientemente ausentes, buscando dissuadir as esposas de seus pequenos delírios domésticos. Já as mulheres correspondem à descrição de figuras histéricas, paranoicas, carentes e possessivas demais. Enquanto os homens transbordam de razão, elas constituem pura emoção, pulsão de vida e morte – na única cena de sexo, a gentil esposa pede ao marido para lhe dar mais um filho. É isso que importa a elas, afinal: ter uma casa com crianças, um belo carro, roupas bonitas, o cabelo sempre bem penteado.

O diretor explora o American Way of Life transportado à Bélgica, sem qualquer ponto de vista crítico ou satírico. O fato de ser tão solene, de se levar tão a sério, contribui à impressão de uma obra misógina. De acordo com o filme, todas as mulheres: 1. Sonham em ser mães, 2. Sonham em ser donas de casa, 3. Enlouquecem sem um filho e/ou um marido para lhe controlar os impulsos. Ao mesmo tempo, elas nadam na culpa de não serem mães ainda melhores. A responsabilidade pelas crianças recai unicamente nas costas das mulheres, com quem o roteiro brinca de modo sádico: as crianças estão constantemente desaparecendo, subindo no parapeito de janelas, comendo doces com ingredientes que lhes causem alergia. A qualquer momento, alguém pode ser morto, cabendo às supermães protegerem os pequenos de todos os perigos do mundo. Elas se tornam tão responsáveis pela vida quanto pela morte dos filhos, em qualquer circunstância que esta vier. Nem Lars von Trier havia encontrado maneira tão incisiva de culpabilizar as mães.

Talvez o roteiro sobrecarregado de mortes pudesse ser suavizado por uma estética glacial, observadora, ambígua. Ora, Masset-Depasse não tem nada de Michael Haneke, lançando a cada cena todo o arsenal de que dispõe: plano (close-up) na mãe desesperada + contracampo (também close-up) na criança em perigo, ambos em câmera lenta, com uma forte trilha orquestrada, suaves movimentos e câmera em steadycam e figurinos de época impecáveis. O cineasta adota uma estética pomposa que jamais permite ao filme assumir seu caráter trash. Havia um belo espaço para se brincar com os códigos do filme B, porém o elenco acredita estar atuando num suspense hitchcockiano – certamente, a principal referência de Instinto Materno. Por isso, Veerle Baetens arregala os olhos já expressivos a cada momento, visto que não há uma única cena de paz para esta mater dolorosa. O resultado poderia ser ainda mais interessante caso os papéis principais fossem trocados: Anne Coesens, atriz mais sutil, seria capaz de trazer algumas nuances à espiral decadente da protagonista.

Instinto Materno pretende ser ao mesmo tempo um drama e um suspense psicológico, mas ao sublinhar demais os traços de cada um, se torna um melodrama com toques de terror. Ao invés de explorar as consequências fascinantes do luto, continua a acrescentar novas reviravoltas, perdendo qualquer relação com a verossimilhança no terço final. Mesmo partindo de um rico material humano, sucumbe à tentação de ser mais esperto que o espectador, estando sempre um passo à frente, enganando-o até o final. Entretanto, este aprendiz de M. Night Shyamalan esquece que, quando se cria suspense o tempo inteiro, se mata a tensão: quando tudo é tenso, nada o é. Seria possível navegar pela montanha-russa de mortes e dores proposta, caso o filme encontrasse tempo para silêncios, contemplação, dúvidas. No entanto, a montagem acredita que o acréscimo de dores tornará o resultado ainda mais potente. Este texto parece se limitar aos verbos, às ações: ela fez, ela viu, ela correu, ela salvou, ela matou. Faltam os substantivos, os adjetivos, os advérbios. Falta transformar estas mulheres em figuras tridimensionais, e não meras peças de um jogo perverso da direção.

Filme visto online no MyFrenchFilmFestival, em fevereiro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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