Crítica


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Sinopse

Proibido a Cães e Italianos: Decidida a ter uma vida melhor fora da Itália, a família Ughetto tenta encontrar na França seu novo porto seguro.

Crítica

Quem estudou a migração italiana ao Brasil entre os séculos 19 e 20 terá ferramentas para compreender rapidamente os cenários de Proibido a Cães e Italianos. Guardadas as devidas proporções, dá para estabelecer relações entre a jornada dos Ughetto de Piemonte, na Itália, à França e depois aos Estados Unidos, e a de diversas famílias que saíram da Europa rumo à América do Sul a partir da década de 1870 em busca de uma vida melhor. Muito trabalho, uma rotina franciscana forçada pela miséria, o senso de comunidade sendo sedimentado em meio às perdas pelo caminho e um sucesso por força da resiliência desse povo obstinado, talhado pelas adversidades. No entanto, a animação selecionada à 8 ½ Festa do Cinema Italiano 2023 não é exatamente a respeito desse deslocamento que situa os italianos em outros territórios – ou mesmo sobre o desenraizamento que certamente causava angústia numa gente tão apegada à terra. O filme tem como protagonista um diálogo lúdico entre o cineasta Alain Ughetto e a sua avó, Cesira (voz de Ariane Ascaride). Além de realizador, Alain é a voz e a mão humana que interagem com a representação em massinha da mulher geradora de seu pai. Trata-se, portanto, da conversa imaginada que estabelece uma dinâmica ao mesmo tempo amorosa e repleta de saudade. Os artifícios do processo são escancarados, não escondidos como meios de produção.

Então, de certa forma, podemos considerar Proibido a Cães e Italianos um documentário com margens generosas à fantasia, à suposição e à invenção. A Cesira animada em stop-motion é uma representante da figura da avó italiana, a guardiã das memórias adormecidas que transmite às novas gerações os feitos e dificuldades dos que vieram antes. Por sua vez, Alain abre os bastidores cinematográficos desse diálogo com a sua falecida avó. Para tanto, mostra cenas iniciais de uma viagem à Piamonte, exatamente à vila paupérrima em que nasceu o seu avô, Luigi, e onde começa a sua reconexão com as raízes piamontesas. Somos apresentados a uma típica casa de Ughetteria e, imediatamente depois, à sua equivalente em miniatura feita com cartões de papelão e outros materiais. Com isso, o realizador evidencia que a construção visual do longa-metragem é baseada na pesquisa e na memória, ou seja, atende a um imaginário que, por sua vez, é feito de constatações e lembranças mais ou menos representativas. Dentro dessa perspectiva estética que expõe os artifícios para paradoxalmente melhor relatar a realidade, Alain enfatiza que as árvores são feitas de brócolis e constantemente adiciona camadas ao discurso por interferência de sua mão (enorme em relação aos bonecos). Esse jogo prevê também que, em instantes pontuais, personagens recorram a Alain e denunciem a sua presença.

A utilização da animação em Proibido a Cães e Italianos é propícia ao teor lúdico da investigação familiar. Sem a intenção de atenuar a aridez de determinados episódios – como as fases de miserabilidade extrema, a sombria ascensão do fascismo no mundo e a morte de entes queridos por problemas relacionados às carências básicas –, Alain confere um espaço generoso às histórias contadas/criadas pelos antepassados para amenizar o sofrimento. Quando, depois de muito penar, a família principal compra um terreno e finca raízes, o espaço é batizado de “Paraíso”. Ao se referir aos Estados Unidos (destino de tantos italianos migrantes), Luigi cita a imagem promissora de “uma fabulosa terra onde os dólares crescem em árvores”. Dentro dessa construção poética, há também a imagem da vaca de brinquedo cuja cabeça sempre cai – preservada como amuleto na entrada da vila que sofre pela falta de leite no dia a dia –, a bicicleta adaptada como propulsora de energia elétrica à residência dos Ughetto, entre outros elementos curiosos que servem para intensificar essa acentuação da fábula. E, ainda sobre a conversa entre animação e animador, há grandes buracos de tempo em que esse diálogo entre os bonecos animados e o cineasta representado pela mão humana simplesmente somem da trama. Alain economiza essa interação, aos poucos a colocando numa posição mais de ruído ocasional.

Proibido a Cães e Italianos é um filme bonito sobre a busca por origem. De certa forma, também é uma ode à persistência de homens e mulheres que se adaptaram às mudanças históricas, enfrentando com a mesma coragem a guerra e a fome, para finalmente conseguir morrer em paz. Levando em consideração que Alain Ughetto está refletindo sobre o passado da própria família, fica implícito um elogio cheio de ternura e orgulho a essa jornada pregressa que ficou cristalizada em seu imaginário como um legado de bravura. Os Ughetto são vistos como testemunhas e vítimas da História, mas nem por isso a produção abre tanto o seu escopo para compreender as guerras e o preconceito sofrido pelos italianos pobres em países vizinhos, como a França e a Suíça. Aliás, em apenas uma cena essa discriminação fica evidente, exatamente quando os Ughetto se deparam com um estabelecimento em que há uma placa com os dizeres que dão nome ao filme. De modo suscinto e cheio de afeto, o cineasta transfere aos bonecos animados em stop-motion a missão de corporificar os seus avós, tios e pais. Com isso, dá vazão à história dos Ughetto, provavelmente respeitando alguns eventos reais, incutindo no enredo a dureza dos tempos efetivamente vividos por seus parentes, mas prezando pelo encanto visual. O resultado é um documento animado feito de memórias, causos e, certamente, de invenção.

Filme visto durante a 10ª 8 ½ Festa do Cinemas Italiano, em junho de 2023

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

Grade crítica

CríticoNota
Marcelo Müller
7
Chico Fireman
6
MÉDIA
3

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