Crítica
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Sinopse
Dois jovens decidem deixar Dacar, capital do Senegal, rumo à Europa. Nessa travessia, eles enfrentarão uma série de desafios no deserto, mais tarde no encontro com as águas turbulentas do mar e ainda encarar a maldade humana.
Crítica
O cinema responde ao presente. Cada filme é um documento da própria época, construído de acordo (ou em dissonância) com as pautas, as lutas e as tendências estético-narrativas vigentes. Há algum tempo o cinema europeu vem discursando a respeito da questão migratória, uma das mais graves crises humanitárias das últimas décadas. Milhares de homens e mulheres deixam forçosamente suas casas, se desenraizando em busca de promessas de vida melhor em outro lugar, geralmente na Europa vista por tantos como epicentro da civilização ocidental. Tema de muita controvérsia entre conservadores e progressistas, esse tipo de êxodo comumente descamba em tragédia, como acompanhamos infelizmente com frequência nos noticiários sobre embarcações naufragando durante travessias ilegais e vitimando fatalmente os esperançosos. Eu, Capitão é uma produção italiana sobre um personagem senegalês que, aos 16 anos de idade, resolve rumar ao Velho Continente na companhia entusiasmada de seu primo. Seydou (Seydou Sarr) é órfão de pai, tem vários irmãos e vive sob as asas de uma mãe daquele tipo endurecida, que a vida capacita para atravessar as privações. O que veremos nos 120 minutos desta produção indicada ao Oscar de Melhor Filme Internacional (representando a Itália), cuja fotografia assinada por Paolo Carnera sublinha expressivamente os tons terrosos, é uma repetição dos procedimentos de vários outros filmes com premissa semelhante. Portanto, nada muito original.
Claro que a originalidade é um elemento relativo para avaliar os filmes. Há obras que reciclam velhas fórmulas, mas o fazem com tamanha perspicácia e vigor que chegam a ressuscitar o nosso interesse no desgastado pela repetição. No entanto, não é o que acontece na trama conduzida pelo experiente Matteo Garrone. O festejado cineasta italiano segue uma cartilha relativamente segura estabelecida pela quantidade de histórias semelhantes contadas no cinema. Vemos Seydou ansioso para empreender a viagem marcada por ideais desmontados antes mesmo de uma eventual travessia oceânica; pequenos contratempos que colocam a missão em risco; e, depois, uma verdadeira epopeia marcada por obstáculos cada vez mais intransponíveis, ao ponto de transformar o êxito numa circunstância praticamente milagrosa. Se há algo que sobressai nessa operação é a observação dos mercados ilegais que se formam a partir da miséria alheia, da demanda (que gera uma oferta) de pessoas oriundas do continente africano que almejam a Europa como quem observa ao longe um oásis – mas que, na verdade, não passa de uma miragem. Do homem que extorque os jovens primos para confeccionar seus passaportes, passando pela cobrança de propina do militar que identifica a fraude, chegando ao homem que, por ganância, coloca nas mãos do adolescente inúmeras vidas, é evidente esse mercado da dor. O que mais existe nesse caminho tortuoso são homens lucrando com o desespero dos demais.
Uma vez que enfatiza os tentáculos do capitalismo nutridos pela crise migratória, Matteo Garrone poderia fazer disso o centro gravitacional de Eu, Capitão, assim desdobrado tudo a partir da crítica direcionada aos efeitos do êxodo à Europa. Mas, infelizmente, isso não acontece, pois a exploração pela qual Seydou e Moussa (Moustapha Fall) passam é encarada como parte dos contratempos para atingir o sonho, não como situação indicativa dos mecanismos capitalistas que precisam da miséria de uns para gerar riquezas a tantos outros. A seu favor, o cineasta italiano tem personagens carismáticos e atores que conseguem expressar a esperança dos senegaleses decididos a ir em busca de melhores condições no além-mar. É curioso que o protagonista, bem como vários homens que ele encontra pelo caminho, vista camisetas de futebol, esporte tantas vezes associado à possibilidade de ascensão social de pessoas talentosas vindas de situações economicamente desfavoráveis. Especificamente quando Seydou utiliza o uniforme do Barcelona, um dos mais poderosos times da Europa, em cuja estampa desbotada ainda se pode ler Unicef (o Fundo das Nações Unidas para a Infância), percebe-se uma triste ironia, pois a infância/adolescência de Seydou e Moussa certamente nunca teve apoio de órgãos internacionais para vislumbrar um horizonte senegalês menos precário e asem perspectivas. Uma pena que Matteo Garrone não valorize essas pequenas ironias e outros detalhes mais sutis.
De fato, Eu, Capitão não vai tão além de reproduzir o que vimos em filmes anteriores sobre o mesmo tema. Os jovens enfrentam muito mais empecilhos do que imaginavam, chegando a ser separados e a encarar prematuramente a real possibilidade de morrer. A denúncia de Matteo Garrone utiliza o sofrimento alheio como alerta, mas não ultrapassa essa intenção de mostrar a dor de uma parcela carente do mundo. Se ele não ressalta (como poderia) a relevância do próprio capitalismo para tudo aquilo – até as promessas da Europa idílica fazem parte disso –, tampouco coloca em jogo a perspectiva histórica. Sim, pois muitos dos homens e mulheres que decidem enfrentar toda a sorte de perigos para migrar à Europa vêm de países anteriormente colonizados e explorados à exaustão por europeus que, diante desse êxodo, oferecem, quando muito, o mínimo que se espera de nações com senso humanitário. Sem trazer para essa equação um contexto um pouco mais vasto de causas e consequências, o cineasta italiano somente conta uma história inspiradora que nas entrelinhas reforça a primazia da força de vontade. Mas, sabemos no mundo real que não basta querer e persistir para triunfar na luta contra um sistema tão perverso que atrai jovens com promessas infundadas, mas os regurgita antes mesmo de eles perceberem a realidade com os próprios olhos. No fim, o filme é sobre a recompensa pela persistência, pois prioriza um elogio à resiliência de Seydou em detrimento do diagnóstico maior.
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