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Sinopse

Uma jovem estudante, que mora com o namorado e a família dele, começa a se relacionar secretamente com o fazendeiro vizinho, um homem mais velho e problemático, no verão da Alemanha de 1990.

Crítica

O mundo, lentamente, começa a juntar seus pedaços. Mas, para Maria (Marlene Burow, de Beleza, 2022), o movimento é outro: o de desconstrução, para que, dessa mudança, uma nova mulher possa se manifestar. Alguém que talvez nem ela própria tenha consciência da sua possibilidade, mas que, uma vez capaz de vislumbrar espaço para crescer, não irá voltar mais para trás. É como o início de um movimento que vai, aos poucos, tomando conta do todo, de forma lenta e gradual, quase imperceptível num primeiro momento, mas que, antes que se possa perceber, tomará conta do seu ser. Uma descrição como essa, no entanto, pode se mostrar digna de um espírito novelesco de qualquer folhetim romântico mais (ou menos) inspirado. Pois é também o terreno por onde cresce – e se desenvolve – o enredo do drama alemão Um Dia Nossos Segredos Serão Revelados. Resta saber, no entanto, quem são esses a quem a referência se propõe válida, e, ainda mais importante, se o “tudo” de um também será pertinente ao universo do outro.

Numa Alemanha do início dos anos 1990, ainda aprendendo a se ver como uma só nação, sem o muro físico e nem as outras divisões que por anos se impregnaram no modo de ser e agir dos seus cidadãos, Maria busca descobrir quem é de verdade. Pressa, no entanto, não possui. Com apenas 19 anos, tem a vida inteira pela frente – e, de fato, errada não está. Após a mãe perder o emprego e voltar para a casa dos pais (avós da garota), a jovem decide declarar sua independência. O passo inicial foi se mudar para a casa do namorado, onde os dois ganham o sótão inteiro para eles. Lá, porém, revela dificuldade em se adaptar àquele novo estilo de vida. Não reconhece de imediato em como pode colaborar com as atividades da fazenda, reluta em deixar aquele espaço que vê como apenas seu e do amante, e até a escola pensa em abandonar. Mente vazia, oficina do diabo, já diz o ditado. Entre dias ocupados com livros e histórias de amor, começa a vislumbrar uma para si que vá além da conformidade daquilo que está posto, em ordem e sem conflito. Tinha tudo alinhado e, por isso, decide complicar o que era dado como certo.

Quando Henner (Felix Kramer, visto na série Dark, 2017-2020), entra na venda que a família mantém, os olhares que os dois trocam ganham novos significados. Vizinho das terras da frente, distância entre eles não há: basta uma leve caminhada e logo estão juntos, com tudo de bom e de ruim que essa proximidade pode trazer. Antes que consigam racionalizar o que sentem, estará ela na cama dele. Mas não será um romance água-com-açúcar que esperam dessa interação – isso ela tem com o rapaz com quem convive. Da nova relação outros sentimentos despertam: posse, ciúmes, violência, controle, domínio e entrega. Algo que, como rapidamente fica claro, tanto para ela, quanto para ele, a garota nunca havia experimentado. “Isso também faz parte de mim”, ele revela. Assumir o romance, portanto, implicaria em tê-lo por completo, não apenas o que de melhor está disposto a oferecer, mas também o ser atormentado que nele reside, o que foi abandonado e no fundo de uma garrafa segue esperando encontrar um propósito. Ninguém é sozinho, pois são dos seus demônios que muitos fazem de companhia.

A questão é que, ao invés de um triângulo amoroso – por mais que essa seja uma estrutura reconhecível e de desfecho igualmente fácil de ser antecipado – nem isso a diretora e roteirista Emily Atef (mais conhecida por ter comandado alguns episódios da série Killing Eve, 2022) consegue elaborar com maior consistência, permanecendo no terreno da ameaça mais tempo do que o desejado. Maria, mesmo que na prática esteja entre dois homens, nem chega a se questionar a respeito de com qual dos dois quer ficar. É a paixão da juventude, algo que vem tão rápido quanto se esvanece. Para justificar o abandono daquele que era, até então, um projeto de vida a dois, a realizadora força um crescente desinteresse por parte de Johannes (Cedric Eich, de João e Maria: Caçadores de Bruxas, 2013), quando na verdade tudo o que o rapaz tem é uma meta: com o país inteiro se abrindo para novas possibilidades, não causa espanto ele almejar um futuro auspicioso para si – e para quem com estiver – através de um trabalho não meramente braçal, mas também artístico: seu sonho é ser fotógrafo. Porém, isso é posto em cena como se as duas coisas – a profissão e o relacionamento – fossem incompatíveis. Melhor, portanto, é ela partir com o homem mais velho e bruto, pois ao menos esse nela está interessado? Eis uma visão exageradamente maniqueísta.

Para não ficar apenas nas idas de Maria entre Johannes (enquanto ela se esforça em manter as aparências, com poucos realmente parecendo notar suas ausências cada vez mais frequentes e duradouras) e Henner (que até hesita em levar adiante a relação dos dois, e se assim o faz é mais pela própria fraqueza do que por acreditar em um futuro para o casal), Atef insere alguns comentários a respeito da reunificação alemã – a família que se reencontra, o irmão mais velho que foi embora e agora volta à casa tendo progredido enquanto esteve afastado, mesmo o vilarejo onde todos moram que aos poucos vai ganhando ares mais modernos – mas é tudo por demais superficial para justificar um viés assumidamente político, quando seu verdadeiro interesse está em um romance cálido, ainda que passageiro. Os flagrantes flertes, desde a cena de abertura, com a literatura russa facilitam o desandar das coisas rumos a uma tragédia que, quando imposta, não chega necessariamente a surpreender, visto que anunciada de antemão. E assim, Um Dia Nossos Segredos Serão Revelados é apenas uma promessa vazia, levantada em direção ao vento e sem consistência para durar mais do que uma brisa de ocasião. Bonito de se ver – e refrescante no sentir – mas igualmente descartável frente aos dramas de uma vida que apenas a existência e o passar dos anos pode oferecer de verdade.

Filme visto durante o 73º Festival Internacional de Cinema de Berlim, na Alemanha, em fevereiro de 2023

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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