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Sinopse

Imagens estranhas e uma trilha sonora igualmente misteriosa sustentam uma jornada em Porto Alegre, no sul do Brasil. Uma trama cheia de maravilhas que mudará profundamente a vida de duas irmãs quando se reencontram  com o pai ausente.

Crítica

A priori, Irmã (2020) adota o caminho tradicional do road movie e da viagem de autodescoberta. Duas irmãs, a adolescente Ana (Maria Galant) e a pequena Júlia (Anaís Grala Wegner), viajam a uma pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul, onde devem se encontrar com o pai, que não veem há anos. Elas precisam discutir a doença da mãe, que a impedirá de cuidar das duas filhas dali em diante. Ao invés de os adultos determinarem a estrutura familiar, chega a vez de as meninas exigirem dos pais uma reconfiguração necessária ao bem-estar de todos. Nesta jornada, poderia se esperar que as duas irmãs brigassem e se reaproximassem, que o pai ausente redescobrisse sua vocação protetora, e que todos os laços se atassem, garantindo uma recompensa emocional ao espectador. Ora, o primeiro impacto provém da visão pouco otimista dos diretores Luciana Mazeto e Vinícius Lopes, mais interessados nos confrontos do que nas conciliações.

Conflitos da narrativa à parte, o que realmente salta aos olhos diante do projeto são as escolhas de direção. Os diretores transbordam de ideias para retratar esta viagem, e todas elas são empregadas ao longo de aproximadamente noventa minutos. Os conceitos mais poéticos, metafóricos, brutos e absurdos são introduzidos uns após os outros, sem moderação. A dupla tem a vantagem de acreditar tanto em seu dispositivo que não parece duvidar de nenhuma de suas escolhas. Assim, há momentos de projeção em vídeo sobre o rosto e as costas das meninas, instantes musicais antinaturalistas, cenas de inspiração em ficções científicas, e outras, em telenovelas melodramáticas. Há cenas de efeitos especiais mais naturalistas ao lado de efeito assumidamente falsos. Os dinossauros ora se tornam brinquedos lúdicos, ora se transformam em referências literais ou ainda em indícios histórico-científicos, por meio de fósseis. É impressionante a quantidade de interstícios poéticos que os diretores conseguem embutir numa única jornada.

Com tantas apostas em jogo, seria de se esperar que algumas funcionassem melhor do que outras, e provavelmente cada espectador poderá apontar qual elemento julga apropriado, belo, e qual soa excessivo ou vaidoso. O jogo de imaginação entre as irmãs, quando observam peças de louça num armário e adivinham de onde cada objeto veio, e qual uso teve no passado, revela a bela cumplicidade entre as duas, além de transmitir um imaginário compartilhado – as duas tornam-se coautoras de suas ficções em comum. As cenas cantadas juntas, apresentadas acapela ao espectador enquanto elas escutam a melodia em fones de ouvido, proporciona uma intimidade convincente entre ambas. A cada vez que o projeto encontra uma intersecção entre a infância e a juventude, através da sensação de orfandade em comum às duas, o resultado se torna mais forte. Mesmo as simples cenas na cachoeira transparecem afeto, contribuindo à construção da personalidade de ambas.

No entanto, outro grupo numeroso de recursos transmite a aparência de ruídos tão extremos que se sobrepõem ao humanismo do roteiro. Um conflito importantíssimo, e profundamente dramático, adquire efeito cômico ao ser transformado numa telenovela. Por que embutir numa parte tão importante do filme tamanho efeito satírico, capaz de reduzir a dor das meninas ao deboche ou à artificialidade típica dos folhetins? Em outro momento, as conversas são convertidas em letreiros sem som nem imagem referencial. Que tipo de distanciamento os diretores acreditavam produzir com o recurso tão desconectado da linguagem que o cerca? Mesmo a doce brincadeira das garotas com um lençol se traduz num plano longuíssimo, esticado pela montagem para além de seu efeito poético ou narrativo. Irmã se torna um filme cheio de vigor, mas também cheio de arestas, como um diamante não lapidado.

Ainda assim, o projeto serve a reafirmar o potencial criativo dos diretores e o talento para trabalhar com o elenco. Não é nada fácil obter, num filme de estreia, cenas tão naturalistas quanto a conversa das garotas dentro do ônibus ou o karaokê no bar, que poderia facilmente se tornar patético. Existe evidente carinho pelas meninas, e quanto mais as cenas soam improvisadas entre as duas atrizes principais, melhor é o resultado. O projeto se enfraquece a cada sequência roteirizada demais (a longa conversa com o pai no carro, rumo a Porto Alegre, ou a briga no corredor, com o enquadramento insistindo em se corrigir o tempo todo) ou a cada proposta fantástica que, ao invés de contribuir à trama, se traduz em ludicidade retórica. Restam duas boas e complexas personagens, dentro de um conflito familiar plausível que nunca se explica mais do que precisaria. Felizmente, os diretores acreditam na capacidade do público em supor o que se esconde nas lacunas, convidando-o a projetar na história das garotas as suas próprias experiências de vida.

Filme visto no 70º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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