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Sinopse

Valério mora em Roma, no ano de 1976, e tem uma imaginação bastante fértil. Ele passa a ser assolado por uma sensação paralisante de medo após seu pai sofrer um atentado terrorista. Mas conhece Christian, menino mais velho, solitário e rebelde, que vai ajudá-lo a ter um verão inesquecível.

Crítica

Irmãos à Italiana (2020) parte de um trauma real. Quando criança, o diretor Claudio Noce presenciou um ataque terrorista contra seu pai, um renomado juiz. Embora o homem tenha sobrevivido, a imagem dos tiros disparados e do cadáver do terrorista, morto durante o ato, marcaram sua vida, despertando uma relação especial com a morte. Como bom artista, Noce acertou as contas com esta ferida tão pessoal através da arte, transformando o episódio numa fábula de impressionante ternura. Caso encarasse a iniciativa por um olhar justiceiro, visando estabelecer a verdade dos fatos, provavelmente apostaria na linguagem crua e naturalista. Ora, o drama efetua a escolha pela memória afetiva, ou seja, as lembranças entrecortadas por sensações, desejos, projeções, recalques. Por isso, esta reconstituição levanta mais questões do que resolve: o cineasta prefere ser fiel às emoções experimentadas na época quando desconhecia as atividades profissionais do pai e os motivos para alguém desejar matá-lo. Fiel ao ponto de vista do menino, o filme impede o espectador de descobrir algo de que ele também não saiba: vemos as conversas dos adultos por frestas da porta, ou pelos sons abafados de uma ligação telefônica no cômodo ao lado. Além de ser um drama sobre a infância, o filme representa o mundo visto pelos olhos fantasiosos de uma criança.

A estética acompanha o funcionamento dos sonhos, às vezes absurdos em sua lógica interna, porém verossímeis enquanto se desenvolvem. A partir do momento em que a família, recuperando-se do crime, passa alguns dias no campo, o diretor de fotografia Michele D’Attanasio multiplica as luzes douradas do pôr do sol, os contraluzes, os flares, favorecendo a perda de referências geográficas diante de campos infinitos e semelhantes. A montagem permite que o pequeno Valerio (Mattia Garaci) descubra um casarão assustador, numa sequência interrompida abruptamente. Estamos em pleno fluxo de ideias, ainda que dentro de uma trama linear. Há trilha sonhadora para embalar a coming of age story (trama de passagem à fase adulta), além de uma infinidade de metáforas para expressar a relação do menino com a morte e a fragilidade humanas: desenhos de corpos jogados no chão, rabiscos do incidente num caderno, a síndrome de pânico dentro de um túnel, e sobretudo a sensação de que o pai morreu, e aquele sujeito voltando do hospital dias depois seria, na verdade, uma cópia ou um fantasma. O protagonista completa aquilo que não compreende com especulações mágicas, e visto que há muitos elementos confusos na cabeça dele, o teor se torna ainda mais especulativo.

Noce adota uma estratégia arriscada: ele cola a sua câmera ao ator mirim durante a integralidade da narrativa, seja no rosto ou na nuca. O pequeno Mattia Garaci está presente em praticamente todas as cenas do filme, seguido pela câmera asfixiante destinada a captar cada hesitação ou dúvida. Felizmente, o ator é bem dirigido, equilibrando a espontaneidade da infância com encenações competentes de um stress pós-traumático. Além disso, a chegada abrupta de Christian (Francesco Gheghi) à vida do garoto atribui novos caminhos à trama. Este menino mais velho que ensina Valerio a roubar, beber álcool e fugir de casa de madrugada, teria aparecido por algum motivo específico? Seria uma bela obra do acaso, ou mais uma fantasia do menino dotado de imaginação fértil? O diretor gosta de brincar entre estas possibilidades, evitando as revelações para privilegiar ambiguidades. A interpretação final quanto à existência de Christian caberá ao espectador. No entanto, o personagem serve de válvula de escape ao herói, permitindo que tome atitudes impensáveis e se torne um novo referencial de masculinidade, além do pai cuja existência descobriu não ser eterna.

Em paralelo, Irmãos à Italiana aborda o terrorismo por um prisma distante do cinema-espetáculo, que privilegiaria perseguições empolgantes e vilões implacáveis. Para um artista diretamente envolvido no caso, surpreende o tom comedido adotado por Noce, menos preocupado com os fatos do que com a repercussão do episódio em seus personagens. Percebemos por citações de terceiros a noção de um terrorismo de esquerda, o que leva a deduzir o posicionamento político do pai Alfonso (Pierfrancesco Favino). A política italiana se limita ao pano de fundo de um conto sobre a perda da inocência, condicionada ao fim da idealização da figura paterna. O drama interessa menos pelo que tem a dizer a respeito da corrupção na Itália do que pelas implicações psicanalíticas de um luto simbólico experimentado pelo menino, diante do pai ainda vivo. O autor possui muito cuidado com o personagem (e consigo mesmo, afinal) para equilibrar as sequências agressivas com outras de leveza e humor, acompanhadas de trilha sonora lúdica. Curiosamente, a jornada se inicia e se encerra décadas mais tarde, reforçando a interpretação de que os acontecimentos daquele verão ficariam marcados para sempre. Nestes instantes de respiro, Noce admite a posição de adulto olhando para o passado, como se precisasse, enfim, tomar distância em relação à narrativa em primeira pessoa.

O filme se converte num drama competente e sisudo, do tipo que chama atenção à coreografia delicada da fotografia deslizando elegantemente entre os corpos, às composições precisas em scope, à luz banhando os personagens, à beleza dos cenários, à atuação impressionante do garoto no papel principal. O autor adota um caminho convencional em termos de estrutura e de simbologias, incluindo abraços apertados ao pôr do sol, passeios de bicicleta por cenários paradisíacos, pactos de sangue entre meninos rebeldes, choros reprimidos de uma mãe traumatizada. Há uma parcela de romantização neste cinema benevolente, justificada pela necessidade de retirar a morbidez do episódio e substitui-la com as ferramentas do “filme de férias”, da aventura possivelmente mágica com um amigo imaginário. O cineasta jamais oculta a brutalidade do caso (vide os recortes de jornal, as metralhadoras no porta-malas, o cadáver agonizando), porém ressignifica estas imagens através da repetição e do estranhamento fabular. Há um caráter terapêutico na iniciativa: ao invés de se vingar da dor que sentiu, Noce busca fazer as pazes com ela. O espectador é convidado a se juntar ao autor, não na posição de voyeur ou testemunha, e sim de confidente, capaz de enxergar aquilo que nenhum outro adulto presencia durante as escapadas do menino. O diretor nos oferece, uma vez mais, a oportunidade de observar o mundo pelos olhos da infância.

Filme visto online no 8 ½ Festa do Cinema Italiano, em junho de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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