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Sinopse

Aguardando o retorno do filho que trabalha em minas da África do Sul, uma viúva de 80 anos que vive nas montanhas do Lesoto recebe a notícia de que ele morreu. Não encontrando motivos para viver, ela começa a organizar-se para morrer. No entanto, os planos governamentais de inundar a região a fazem criar forças para defender o patrimônio daquele lugar cheio de História.

Crítica

Não é difícil se identificar com a heroína de Isso Não É um Enterro, É uma Ressurreição (2019). Mantoa (Mary Twala Mhlongo), senhora idosa do interior de Lesoto, constitui a típica figura que luta sozinha contra tudo e todos, manifestando uma energia inesperada para seus 80 anos de idade. Quando descobre que a cidade de seus ancestrais será inundada para a construção de uma represa, a mulher protesta contra as autoridades enquanto os vizinhos acatam a decisão em silêncio. Quando reivindica o direito de cavar uma cova para si, sendo enterrada naquelas terras antes da destruição, é considerada uma pobre velha desprovida de bom senso. Diante de ataques violentos contra sua família e sua casa, nenhuma voz se ergue para ajudá-la, muito pelo contrário: o perverso líder local faz chacota da situação. Mesmo assim, provação após provação, ela resiste, efetuando sua política solitária em defesa da memória e do patrimônio histórico. Mantoa representa a voz da lucidez numa terra de loucos, a única moradora apegada aos costumes seculares em meio a um grupo de jovens movidos pelo “progresso”: “Estamos falando de desenvolvimento aqui”, alegam.

O diretor Lemohang Jeremiah Mosese enxerga no caso de martírio um exemplo a ser seguido. Ele sacrifica o corpo, a integridade emocional e o fim da vida de sua protagonista em nome de um ideal, mesmo que para isso precise acentuar os traços do conflito ao limite do maniqueísmo. A lesotiana idosa luta contra um governante perverso que jamais enfrenta qualquer protesto ou manifestação coletiva. É curiosa a apatia do vilarejo em uníssono, num grupo de personalidades indistintas, desprovida de propostas de organização para além da autoridade policial e do padre. Não há dúvida quanto ao ponto de vista da direção, traduzido de maneira didática no embate entre a tradição e a modernidade, o apego à História e à Cultura contra o pragmatismo capitalista. As possibilidades de conciliação e as vias alternativas são inexistentes: percorre-se fatalmente um caminho ou outro. O filme interpreta a finitude no horizonte de cada personagem (e de cada ser vivo, é claro) enquanto punição ou libertação – em outras palavras, uma morte exemplar. Aceitar a sina de nossa impermanência (algo possivelmente benéfico) equivale no caso a aceitar a exploração inevitável (algo contestável), ou então render-se ao sacrifício pela causa.

Em se tratando de ciclos de vida e morte ou, como afirma o título, de enterro e ressurreição, o roteiro navega por diálogos e simbologias bastante explícitos. Os passarinhos caindo do ninho, a árvore frondosa cortada por exploradores e as crianças observando os mais velhos transmitem com clareza a mensagem de que a vida se renova. Os diálogos reforçam as reflexões literais: “Cheguei à conclusão de que nada vai durar. Quando se perde uma alma, nasce outra”, ou ainda “O tempo está mudando. Temo que não possamos resistir à marcha do tempo”. A simplicidade destas explicações possui um teor ao mesmo tempo lúdico, em sua leitura proverbial, e reducionista, caso se interprete a narrativa enquanto retrato do desaparecimento das culturas contemporâneas. Trata-se de uma condução simultaneamente despretensiosa e ambiciosa, por mirar no retrato de lutas universais, condensando diferentes gerações, gêneros, países e classes populares no enfrentamento pontual entre Mantoa e o prefeito. A clareza da exposição constitui sua força e sua fraqueza.

A estética transparece a dupla abordagem. As andanças da mulher idosa pelas montanhas, além da presença das locações e dos animais apontam para um naturalismo semidocumental. A excelente atriz principal mostra-se muito forte em cena, ainda que sua personagem possua variação mínima ao longo da trama, constituindo o foco unitário de resiliência da primeira à última cena. Entretanto, o cineasta aposta em construções barrocas, literalmente teatrais, com Mantoa vestida em trajes de época, dançando sozinha como num palco shakespeariano, em meio a uma sucessão de imponentes melodias orquestradas. A ostensiva construção imagética desperta atenção para si mesma: a janela próxima do quadrado (4:3), a granulação excessiva, as bordas arredondadas, a simetria precisa das composições, a luz profundamente contrastada e os inúmeros movimentos de câmera (há sequências com tilt, panorâmica e zoom no mesmo plano) estabelecem uma coreografia impressionante, porém exibicionista. Após um incêndio, a escolha de enquadramentos, luz, a posição dos animais e da protagonista remetem a uma pintura meticulosamente calculada, ao invés da urgência e espontaneidade associadas a uma tragédia natural.

No terço final, a heroína perde espaço dentro da história dedicada a ela. A mulher idosa se converte em testemunha ocular dos sofrimentos alheios, como provas de que os moradores deveriam ter escutado os alertas da “louca do vilarejo”. A punição implacável do destino aproxima a narrativa de uma parábola religiosa, o que explica em partes a popularidade do drama de um país pouco conhecido em festivais mundo afora. Para uma obra de linguagem tão rebuscada, o conteúdo se revela acessível, familiar, numa conjunção entre mensagem de esperança e narrativa engajada. Visto que nunca se aprofunda no discurso político (Mosese evita investigar a origem da liderança opressora, as possibilidades de mudança, a renovação de lutas organizadas), Isso Não É um Enterro, É uma Ressurreição pode ser lido enquanto trama conformista sobre a dificuldade dos raros Davis em enfrentar uma multidão de Golias. Esta visão de mundo seria apenas parcialmente satisfatória: se por um lado funciona bem na detecção e explicação dos problemas ao público amplo, por outro lado, revela-se incapaz de enfrentar os dilemas sem se render a eles.

Filme visto online na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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