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Talvez seja apenas parte de uma visão pré-conceitual, mas parece que o cinema de Quentin Tarantino realmente não nasceu para fazer concessões. Mesmo depois de ter realizado Pulp Fiction: Tempo de Violência (1994), celebração cinéfila que o consagrou na indústria mundial como um dos mais criativos narradores do cinema contemporâneo, Tarantino resolveu contar uma história menos estridente do que as de seus filmes anteriores (antes de Pulp Fiction, Cães de Aluguel, 1992), talvez até por isso tenha brochado muitos de seus espectadores, que esperavam um filme mais “descontrolado”. Mas Jackie Brown é a uma obra mais delineada, mais pensante, sem a pulsação frenética de personagens e diálogos das obras-primas anteriores do diretor. A narrativa é menos complicada e a aposta não está tão somente focada em malabarismos estético-narrativos, mas cuidadosamente direcionada a mais uma homenagem: desta vez ao blaxploitation, gênero no qual a protagonista do filme em questão, Pam Grier, já foi musa.
Nem por isso Jackie Brown ficou fadado apenas à cinefilia de Tarantino e sua memória enciclopédica, tampouco é um filme sem identidade. Todas as marcações e os percursos morais de seu cinema estão presentes aqui, e não necessariamente em dosagens menores, mas com novas formas. Se Cães de Aluguel fazia uso de flashbacks para preencher os vazios não mostrados cronologicamente e Pulp Fiction mostrava aquele domínio completo do cineasta ao fragmentar a cronologia, este Jackie Brown aposta no simples desenvolvimento narrativo natural, com a exceção do clímax, que Tarantino espantosamente carrega através do ponto de vista de três personagens. Não há (muito) sangue jorrando, pois a violência gráfica é colocada como recurso e não como prioridade – esta fica totalmente com os personagens.
Jackie Brown (Pam Grier) é uma aeromoça que trabalha na ponte EUA/México. O adendo é que Jackie também tira um extra por fora trazendo dinheiro ilegal para dentro dos EUA, a mando do traficante de armas Ordell Robbie (Samuel L. Jackson), que tem como comparsa Louis Gara (Robert De Niro), um ex-presidiário com quem Ordell dividiu cela. A trama ainda envolve Ray Nicolette (Michael Keaton) e Mark Dargus (Michael Bowen), dois policiais que, após prenderem Jackie por posse de dinheiro ilegal e cocaína, passam a usá-la como informante em troca da liberdade. Ainda há o agente de fianças Max Cherry (Robert Forster) que, após pagar a fiança de Jackie acaba se apaixonando por ela. A jogatina está formada quando o que está em jogo é a quantia de U$ 500 mil.
A demanda de informações é realmente grande, mas há um olhar atento filtrando tudo isso e construindo um espaço dramatúrgico pronto para a contemplação desse universo exclusivamente tarantiniano. Com precisão somos apresentados aos personagens e as ações que estes realizam – em momento algum Tarantino perde o foco de seu filme. A construção do espaço cênico e todos os movimentos de câmera (passando pelo plano-sequência e as diversas acomodações que a câmeras do diretor tomam para si), na verdade estão ali sempre para compor não apenas um registro estilista/autoral, mas de fluência de signos e diretrizes. Na sequência de abertura, por exemplo, que Tarantino abre com um plano-sequência que segue a personagem de Pam Grier enquanto esta é conduzida por uma esteira do aeroporto onde trabalha como aeromoça, somos introduzidos graciosamente à protagonista do filme, Jackie Brown.
Os fetiches de Tarantino por longas pernas e pés com unhas caprichosamente pintadas de vermelho têm aqui seus primeiros passos, sua alvorada. Aqui é Bridget Fonda quem ganha closes nos pés e nas pernas, numa exploração da sexualidade feminina em estado de combustão. O domínio dos movimentos que Bridget faz no quadro é observado sempre de ângulos inusitados, alguns próximos do personagem de Robert De Niro, que é a vítima dessa tentação, sugerindo sua visão e sensação. Nada disso é oferecido apenas como marcas do autor, tendo suas próprias razões de existir conforme o texto desenvolve a relação entre estes personagens. De Niro, aliás, em absoluta imersão de personagem, nos entrega com convicção um dos tipos mais interessantes do filme. Samuel L. Jackson e Pam Grier, ambos com desempenhos aguerridos, constroem personagens marcantes – Jackson com um sotaque carregado e Grier com as formas e trejeitos de uma legítima musa do blaxploitation. O personagem de Robert Forster é de tamanha frieza (e sua performance tão pungente) que aos poucos ganha a empatia e torcida do espectador.
Todo esse vigor do elenco é explorado com precisão por Tarantino, que desenvolve a mise em scène muito mais para dar liberdade aos atores dentro do campo do que para elucidar um vazio. O diálogo é novamente o ponto forte do texto de Tarantino, por sua vez adaptado da obra de Elmore Leonard. Os longos travellings tornam Jackie Brown um filme facilmente identificável. Mas nada disso seria suficiente não fosse a espantosa capacidade do diretor de elaborar tramas concisas e bem amarradas, sem perder o foco com referências – não precisando abrir mão delas, no entanto. Um filme como este só reforça a tese de que a potência do cinema de Tarantino, algumas vezes, é mesmo especial.
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