Crítica


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Sinopse

Em um futuro próximo, uma "Grande Loteria" foi estabelecida na Califórnia, EUA. A pegadinha: matar o vencedor antes do pôr do sol para reivindicar legalmente o prêmio de vários bilhões de dólares. Quando Katie Kim se muda para Los Angeles, ela se depara, por engano, com o bilhete premiado. Desesperada para sobreviver aos caçadores de prêmios, ela une forças com o agente de proteção de loteria amador Noel Cassidy, que fará tudo o que estiver ao seu alcance para levá-la ao pôr do sol em troca de uma parte do prêmio.

Crítica

Críticos de cinema são frequentemente considerados pessoas chatas que não sabem se divertir – como se a um especialista fosse impossível aproveitar até mesmo uma bobagem engraçada. Jackpot: Loteria Mortal começa com uma atitude capaz de engrossar esse clichê, pois afirma que a história será considerada uma distopia somente por alguém “chato”. Porém, do que ela trata? Do contexto de um futuro não muito distante, no qual há uma crise social enorme capaz de aumentar o cinturão da pobreza dos Estados Unidos. Nesses tempos sombrios, Los Angeles cria a loteria com uma regra especial: o portador do bilhete premiado com bilhões pode ser impunemente assassinato até o anoitecer por quem desejar herdar a sua bolada. Se sobreviver, o felizardo pode gozar tranquilamente de uma fortuna inalcançável para a maioria. Portanto, o roteiro assinado por Rob Yescombe parte da construção de um amanhã distópico, mas nega veementemente fazer isso. Discordar do óbvio, ou seja, do fato de que a trama é uma distopia, não importando o seu tom, coloca críticos e espectadores criteriosos numa posição de “chatice” de acordo com os criadores. Portanto, ou você “se diverte adoidado” e faz vista grossa ao cenário ou não passa de “mala” inapto a aproveitar o que o filme tem a dizer. Que tipo de resultado os criadores dessa comédia de ação querem, a não ser desautorizar imediatamente os detratores?

Feita a introdução para comentar essa vergonha de ser uma distopia com viés engraçado, voltamos ao enredo. Katie (Awkwafina) é uma das tantas aspirantes a atriz que chegam a Los Angeles para tentar se destacar num dos mercados mais concorridos dos Estados Unidos. Completamente ignorante quanto à lei das loterias na cidade que antes abrigou Hollywood, ela começa a ser perseguida por uma turba enlouquecida depois de ser sorteada e se tornar o grande alvo da cidade. Destinada a ser assassinada por algum dos moradores que largam seus afazeres e resolvem soltar as feras sob o guarda-chuva da legalidade, ela é salva por Noel (John Cena), segurança particular que por módicos 10% do prêmio se dispõe a proteger a vida da futura bilionária. O cineasta Paul Feig não tem muito interesse em compreender essa sociedade maluca que aceita fazer parte de um jogo sádico orientado pelas engrenagens do capitalismo. Tampouco ele evolui na observação dessa loteria como mecanismo para alienar da população da própria pobreza naquilo que o filme define como segunda Grande Depressão – a primeira aconteceu nos Estados Unidos em 1930. O mais importante é a graça, as piadinhas rapidamente esgotadas pela falta de variações, além da construção do relacionamento de confiança entre a ganhadora em fuga e o guarda-costas gente boa que não tem qualquer traço de contradição e dubiedade moral.

Jackpot: Loteria Mortal usa a distopia somente como pano de fundo, a fim de explicar o sinal verde para as pessoas das classes sociais menos favorecidas pegarem em armas e aceitarem os termos de um jogo perverso no qual o dinheiro compra até a consciência. Paul Feig ignora o cenário social, transformando coadjuvantes automaticamente em potenciais agressores sem personalidade, não incorporando qualquer leitura mais interessante à abordagem recreativa da matança e da vitória da ganância sobre a ética. Quando entendemos que o filme será uma sucessão de emboscadas pouco engenhosas a Katie e a Noel, entremeadas por piadinhas sem graça sobre o mundo das celebridades, o filme passa a ser uma experiência maçante. Isso apesar dos talentos de Awkwafina e John Cena, ótimos como a dupla de fujões. Os protagonistas não deixam a peteca cair, preenchendo as lacunas do filme com desempenhos individuais cativantes, o que ameniza a observação colorida sem senso de gravidade do funcionamento da sociedade. A atriz se dá bem nas cenas de comédia física e ao criar a metralhadora de sacadas na qual sua personagem se transforma ao longo do filme. Ele reitera a vontade de assumir, com gosto e sem um pingo de vergonha (que bom), a persona do gigante bobalhão de bom coração, mostrando cada vez mais credenciais a fim de garantir sua escalação futura para outros papeis semelhantes.

Há um filme norte-americano dos anos 1960 que pode ser comparado, em alguma medida, a essa comédia despreocupada: o dramático A Noite dos Desesperados (1969), de Sydney Pollack. Também ambientado num período de crise econômica nos Estados Unidos, ele mostra um prêmio de US$ 1500 sendo oferecido ao casal que permanecer mais tempo na pista de dança sem desistir da maratona. Mas, o longa-metragem de Pollack constata uma situação extrema e a partir dela escancara a podridão do mundo explorador e sensacionalista. Nessa nova comédia, Paul Feig utiliza o contexto degradante como moldura para enquadrar dois protagonistas fugindo de pessoas malvadas e aprendendo suas lições simultaneamente. Claro que as duas produções têm enfoques e intenções praticamente contrárias, mas se há algo que podemos extrair dessa equivalência é o fato de Jackpot: Loteria Mortal fazer parte de um tempo em que muitas superproduções maquiam premissas alarmantes com um verniz brilhante visando experiências prazerosas. Dentro disso, claro que os bons triunfam e os malvados são derrotados, pois, independentemente do gênero, este pertence a um rol de filmes que, em conjunto, apaziguam nosso espírito alerta com uma promessa de encerramento feliz. Uma pena, pois se Feig fosse um ao menos corrosivo ou caótico, essa comédia poderia cumprir a função de afrontar os poderosos.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

Grade crítica

CríticoNota
Marcelo Müller
4
Leonardo Ribeiro
6
MÉDIA
3

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