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Sinopse

Um olhar à trajetória de Jair Rodrigues, desde os primeiros passos dentro do samba, passando pela consagração com "Disparada", até sua relação com a política nacional e a modificação de seu estilo musical.

Crítica

Jair Rodrigues: Deixa que Digam (2020) sintetiza uma compreensão do documentário que abarca parte considerável da produção nacional. Primeiro, ele transparece a crença de que um bom filme (ou um filme justo, importante etc.) é aquele que fala de pessoas boas – em outras palavras, a biografia de um ídolo. Na pequena apresentação do diretor Rubens Rewald a respeito deste projeto aos espectadores do festival É Tudo Verdade, ele sugere que Jair Rodrigues ganhou um filme porque o merecia, afinal, era um homem excepcional. Assim, caberia ao cinema honrar os merecedores de tamanha homenagem. Nas redes sociais, a equipe afirmava com muito carinho que o projeto teria uma sessão de gala, ainda que virtual, à altura do cantor. Existe, portanto, a impressão de uma obra feita para Jair Rodrigues, mesmo falecido, enquanto trabalho de fãs muito honrados de terem estado em sua presença e desfrutado de suas canções. Neste gesto tão afetuoso quanto humilde, o cinema se coloca em posição de inferioridade em relação à música e ao músico escolhido: o filme não é elaborado para dialogar com a arte do personagem, e sim para resgatar a sua memória, driblando simbolicamente a morte para trazê-lo de volta aos palcos. O que André Bazin dizia a respeito do efeito de mumificação pelas imagens se confirma por este ponto de vista: o projeto busca fornecer um novo objeto de apreciação relacionado a Jair Rodrigues, mesmo que ele não possa fazê-lo por si mesmo.

Segundo, o documentário se incumbe de uma dupla tarefa: explicar quem foi o grande artista, e dizer por que ele era bom no que fazia. Esta tarefa pode parecer óbvia, mas não é: haveria diversas maneiras de dialogar com a arte de Jair Rodrigues, seja pela de representações estéticas equivalentes à música dele (uma montagem acelerada, picotada, com alterações violentas de ritmo, talvez?), pela contraposição de pontos de vista diferentes em relação ao músico, pela representação metonímica de alguns dias capazes de sintetizar a carreira inteira etc. Ora, o diretor aposta no caminho mais convencional, e também no mais unívoco, tratando de explicar o personagem ao público. O roteiro parte do nascimento, acompanha o amadurecimento do protagonista e termina em sua morte. Ele inclui dezenas de depoimentos, todos igualmente elogiosos, reforçando que este homem excepcional deveria receber um reconhecimento ainda maior nos estudos acadêmicos, na música brasileira, na imprensa. Estão presentes as cenas ternas em família, assim como as habituais falas de especialistas diante de estantes de livros, destinadas a sugerir erudição. A montagem efetua uma sequência com as capas de todos os seus álbuns, organiza o discurso por temas nucleares (fala-se sobre a ditadura, sobre racismo, sobre os ingratos anos 1980, como em capítulos de uma exposição), reserva a aclamação do público e palmas para a conclusão, articulando a morte com trechos em câmera lenta.

Não há nada errado neste dispositivo, mas também não existe nada particularmente enriquecedor em reproduzi-lo de maneira tão conformista. A estrutura intercalada com entrevistas saudosistas e material de arquivo constitui para o documentário o que seriam os clichês mais desgastados das comédias românticas na ficção (eles se encontram, se apaixonam um pelo outro, brigam, separam-se temporariamente, mas voltam a ficar juntos no final). Trata-se de uma fórmula funcional, porém pouco instigante enquanto linguagem. Em especial, esta relação de fã com o biografado oferece imagens excessivamente conotadas. Quando o espectador presencia as interpretações de “Deixa Isso pra Lá”, “Disparada” ou “Romaria”, ele sequer ganha a oportunidade de se surpreender com a musicalidade por conta própria, pois logo surgem diversos artistas importantes reafirmando a qualidade excepcional daquele trabalho. Além de se tratar de uma estética condescendente, por supor que não perceberíamos tal genialidade sozinhos, ele reforça uma tentativa de controle sobre a interpretação dos materiais oferecidos. Toda forma de cinema implica numa manipulação dos sentidos, porém algumas linguagens se revelam mais incisivas neste aspecto do que outras.

Jair Rodrigues: Deixa que Digam traz algumas propostas discretas de brincadeira com a linguagem, ainda que produzam efeito modesto. O filho do cantor, Jair Oliveira, é convidado para interpretar o pai em estúdio, narrando a vida alheia em primeira pessoa. A iniciativa possui amplo potencial afetivo e psicanalítico, no entanto, é explorada em poucas ocasiões, limitando-se a reproduzir a função do narrador convencional. O fato de Oliveira ser filho do biografado se torna pouco relevante para o efeito destas cenas, ainda que pudesse provocar fricções muito interessantes na representação familiar. Em paralelo, as fotografias de arquivo pintam um feixe colorido sobre Jair Rodrigues, destacando-o nos grupos e trazendo certo dinamismo aos stills. No entanto, os efeitos de pós-produção não permitem olhar para esta fotografia de modo diferente, tampouco ressaltam algum aspecto que passaria despercebido diante da imagem original. Trata-se de um enfeite singelo, porém pouco interessante enquanto discurso. A frase final, de Maiakowski, constitui a fricção poética mais bela dentro daquele contexto, porque improvável, ainda que obviamente não seja capaz de ressignificar o conteúdo que a precede. Falta perceber o quanto a forma pode implicar em significado, e que efeitos um corte abrupto na montagem, uma aproximação entre cenas díspares ou mesmo um silêncio inesperado podem provocar na experiência do filme.

Ainda que se atenha à linguagem acadêmica, o resultado é fluido, sem tempos mortos, e capaz de transmitir um apreço real dos entrevistados por Jair Rodrigues. Nenhuma pessoa aparenta comparecer diante das câmeras por obrigação ou senso de responsabilidade: percebe-se o carinho sincero tanto dos amigos e familiares quanto do próprio diretor. Enquanto obra de afetos, elaborada por um apreciador e para apreciadores, em gesto assumidamente retórico de extensão da idolatria, o projeto cumpre bem o seu papel. O filme parece se virar aos fãs de Jair Rodrigues e perguntar: “Eu o amo, vocês também o amam?”. A resposta pode ser tão simples e sincera quanto banal: quantas alternativas diferentes se pode oferecer à declaração “Eu te amo”? Resta uma exposição agradável das músicas do cantor, o que serve a reforçar as qualidades do biografado enquanto se busca atribuir valor ao documentário, por extensão. Talvez seja justo dizer que o resultado funciona bem, dentro de suas pretensões – como destacar falta de originalidade num filme que nunca buscou ser original? Quem não tiver qualquer conhecimento sobre a carreira do artista encontrará um resumo claro e suficientemente abrangente. Para quem já o conhecer, e quiser apenas reencontrá-lo de alguma forma, poderá matar as saudades.

Filme visto online no 25º É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, em setembro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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