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Sinopse

Em Jurado Nº 2, um pai de família, Justin Kemp, é convocado para fazer parte de um importante julgamento de assassinato. Ele se depara com um dilema moral significativo que pode influenciar o veredito do júri, potencialmente condenando ou absolvendo o réu acusado de homicídio. Com Nicholas Hoult.

Crítica

No aguardado novo filme do nonagenário Clint Eastwood, os pontos principais são as brechas entre justiça e verdade. Mais que isso, pois seu desenvolvimento levanta questionamentos sobre a validade desses dois conceitos. O que seria verdade? É possível chegar a conclusões plenas de justiça diante de tantas variáveis e subjetividades? Em pelo menos dois momentos de Jurado Nº 2 alguém se refere à malha judicial da seguinte forma: “longe de ser perfeita, mas é o melhor que podemos fazer”, assim demonstrando clareza a respeito da imperfeição “do sistema”. Essa atitude de, numa trama de tribunal, ponderar a respeito da imprecisão das definições de verdade e justiça é o indício da curiosidade de um artista que simboliza há décadas o cinema clássico norte-americano. No nosso tempo de verdades líquidas e falsidades legitimadas pela repetição, as observações de Clint demonstram um senso impressionante de atualidade. O protagonista é Justin (Nicholas Hoult), homem casado prestes a ser pai. Convocado a ser jurado num caso de homicídio famoso na vizinhança, ele pretende dar uma desculpa para ser dispensado. Diante da juíza, Justin cita suas principais responsabilidades como homem de família, de certa forma se escondendo atrás da necessidade de estar ao lado da esposa que tem uma gravidez de risco. Mas, brilhantemente, o roteiro assinado por Jonathan A. Abrams coloca na boca da magistrada a noção de que o trabalho também faria parte de seus compromissos como “homem de família”.

Pode parecer uma coisa pequena essa invertida que a juíza dá em Justin. No entanto, quando notamos que Jurado Nº 2 também fala das noções de dever e compromisso atreladas a papeis sociais, percebemos que cada detalhe importa, cada fala aparentemente comum tem pontos importantes à montagem de um sutil quebra-cabeça. Justin é o típico provedor patriarcal visto previamente como exemplo. Aos poucos, Clint Eastwood demonstra que a sua capacidade de questionar a essência dos arquétipos formadores de uma frágil harmonia social continua intacta, até surpreendentemente afiada para alguém rumo aos 100 anos de idade. Logo saberemos que Justin tem algo muito grave a esconder: o acidente exatamente no dia e nos arredores do crime que ele é convocado a examinar. Depois de sair transtornado de um bar, Justin bateu em alguma coisa com o seu carro no meio da fatídica noite chuvosa. A placa de travessia de cervos o induz a pensar que atropelou um animal, mas e se ele tiver acertado a vítima e cometido o homicídio? Também a partir dessa revelação que acontece cedo no filme, Clint deixa claro que não está pensando em chegar a um veredito, pois a sua intenção é exatamente falar de dúvidas, não de certezas. Em meio a isso, ele coloca várias indagações em pauta. Os temas vão da ética, passando pela culpa, chegando à observação de que às vezes atingir a verdade passa por burlar a justiça.

Estrategicamente, Clint Eastwood nos fornece mais informações do que aos coadjuvantes, assim convidando a uma identificação com Justin. Contudo, nosso nível de envolvimento emocional não passa pela formação de opiniões. Embora sejamos constantemente provocados a ponderar sobre a inocência ou a culpa do protagonista, isso não é determinante na hora em que o ex-policial vivido J.K. Simmons chega próximo do que se pode entender por verdade, por exemplo. O cineasta Alfred Hitchcock afirmou em muitas ocasiões que o suspense não tem a ver com a moral, que se bem orquestrado vai fazer o espectador temer pelo flagrante até dos culpados. Como em Jurado Nº 2 não temos certeza de muita coisa, a relação com o personagem principal fica ainda mais complexa. Por um lado, ganhamos a consciência de que nem ele sabe se cometeu o crime. Por outro, testemunhamos a parcialidade que o leva a, paradoxalmente, defender a seriedade do rito judicial como nenhum outro membro do colegiado escolhido para chegar ao veredito. Justin quer estar em casa o mais rápido possível e ainda tem a oportunidade de ouro para se livrar do problema que coloca em risco a sua família, mas opta por ser a voz dissonante. Manifestação de culpa? Tentativa de manter o princípio da inocência? Manobra autodestrutiva? Todas (e outras) alternativas são plausíveis, mas Clint não está à procura de respostas, lembram?

Jurado Nº 2 é um filme com vários níveis. Na superfície, temos uma trama de tribunal em que o protagonista pode ou não ser o responsável pelo homicídio em julgamento. No entanto, caso o espectador esteja disposto a mergulhar um pouco mais no labirinto, há ali discussões profundas a respeito do estado das coisas e da concepção humana sobre o ideal da justiça como uma manifestação divina da verdade. Clint Eastwood vai adicionando camadas aos personagens para eles não serem tipos interagindo em vão. A promotora vivida por Toni Collette não é apenas a acusadora, mas a política em campanha que perde um pouco de vista a essência de sua atuação; o defensor interpretado por Chris Messina é o advogado convicto da inocência do cliente; os principais membros do júri revelam elementos capazes de condicionar os seus julgamentos (o irmão em luto, a mãe atarefada, a porta-voz que claramente se orgulha do destaque, etc.). Desse modo, o cineasta veterano qualifica o material humano com informações que enriquecem os questionamentos provocados por atitudes e dúvidas. Além disso, Clint praticamente inviabiliza a nossa noção de tempo. Notem que, embora os jurados reclamem frequentemente que estão deliberando à exaustão, ninguém menciona quantos dias se passaram do começo ao fim do julgamento. E isso cria um terreno mais movediço para o espectador. O que importa não é a quantidade de dias, mas o processo de esgotamento que não ganharia muito ao ser mensurado.

A carreira de Clint Eastwood está repleta de personagens encaixados no modelo tradicional do “homem de família”. Aliás, a desestabilização da família ou ainda a tentativa de formar uma são temas recorrentes em sua vasta filmografia. Identificado como conservador, o artista Clint vem questionando os pilares dessa posição ideológica conservadora ao longo das décadas – ou vocês acham que conservadores veem com bons olhos a liberdade individual exercida em Menina de Ouro (2004)? Em Jurado Nº 2, Clint demonstra que ainda tem uma capacidade assombrosa de, por meio do cinema, investigar a natureza imprecisa de conceitos, papeis sociais, bases ideológicas, verdades e mentiras. Justin é um personagem complexo, contraditório, nem sempre capaz de segurar as rédeas do próprio destino. Lutando contra o alcoolismo, reivindicando o direito à mudança, ele tenta fazer a coisa certa, mas não escapa de ser hipócrita por egoísmo e para ser o alfa. Clint Eastwood o associa ao réu, utilizando o arrependimento para construir uma ponte simbólica entre os dois. Por meio da diferença de destino, Clint mostra que a sociedade tende a ser mais benevolente com os homens de família. Não é por acaso que a morte da mulher acontece depois que seu namorado irritado hesita diante da possibilidade de casamento. Clint diagnostica os Estados Unidos como uma nação doente, volátil e dada à farsa, assim como tinha feito John Ford (outro cineasta moderno que virou sinônimo de clássico) em O Homem que Matou o Facínora (1962). Nela, a verdade pouco importa.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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