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Crítica


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Sinopse

Após um desastre nuclear, uma família vive um período de severa fome. Seus três integrantes são convidados para um evento de caridade em que serão alimentados. Tudo parece correr bem, até que alguém desaparece.

Crítica

Kadaver se passa num pós-apocalipse. As manchetes de jornal conjecturam como se chegou ao mundo cinza-azulado, repleto de casas destruídas e cadáveres. Um incidente nuclear e um princípio de guerra atômica estão entre as possibilidades. Leonora (Gitte Witt), atriz de teatro, vive em meio a essa penúria na companhia do marido e da filha pequena. Inesperadamente, certo dia passa pela rua carcomida deles um veículo mambembe anunciando um espetáculo potencialmente capaz de fazer os sobreviventes esquecerem momentaneamente as agruras desse presente com ares de distopia. O cineasta Jarand Herdal escancara a noção de “quando a esmola é demais, o santo desconfia” ao mostrar essa (talvez?) brecha de luminosidade entrecortando um breu aparentemente inescapável. Portanto, é provável que coloquemos os dois pés atrás em contato com as promessas dos artistas, ainda mais em virtude da peça contemplar um jantar. A comida é quase um luxo para poucos nessa realidade não propriamente desenhada de modo amplo. Temos dela somente um breve recorte.

O longa ganha em intensidade dramática ao borrar os limites entre as encenação e os fatos. As regras do lugar transformado em palco são simples. Os presentes mascarados são entendidos automaticamente como espectadores, enquanto as pessoas de cara limpa, por conseguinte, são lidas enquanto peças do jogo teatral que descamba ao macabro. Pelos corredores horripilantes desse cenário que ora ostenta um vermelho enervante, ora apresenta o desbotamento que denota a persistente falta de vida por ali, Leonora perde gradativamente a ideia do que está acontecendo. Logo, cai em desespero quando sua menina desaparece durante a perseguição. Uma vez que somos solenemente convidados a mergulhar nessa circunstância com ela, a partir de sua perspectiva, levados a simpatizar com suas dúvidas e partilharmos dessa paranoia crescente, é um grande balde de água fria perceber a que destinos a produção se direciona impreterivelmente. Por exemplo, tendo isso em vista, com qual intuito se traz às camadas de representação uma possível confusão mental da protagonista?

O filme poderia se empenhar em nos arremessar num estado de violenta desorientação, fomentando a ausência de perspectivas com o além dos limites do hotel e o que nele se vende como experiência extrema. Chega um momento em que presumivelmente Kadaver vai brincar com as entrelinhas dessa complexidade. Já que compreendemos um pouco da conjuntura desse mundo depauperado por meio das manchetes, seriam aquelas que supostamente esclarecem a situação aterradora na hospedaria uma forma de nos ludibriar? Infelizmente não. Jarand Herdal lança mão de vários artifícios meramente ilustrativos, progressivamente limando os elementos indeterminados, ou seja, esclarecendo o que está acontecendo. Esse movimento rumo à natureza literal de uma ameaça eventualmente encenada/imaginada acaba tirando o que o filme tem de melhor, exatamente o componente que funciona como combustível da atmosfera impregnada de um não saber. Soprando as sutilezas para bem longe, ele desenha algo bem explicadinho, prescindindo do desconhecido.

As motivações do vilão – o diretor da peça no hotel sinistro – são elucidadas com o intuito de não deixar dúvidas. É realmente uma pena que Kadaver deixe para trás o potencial do engajamento próprio do jogo teatral, utilizando-o como mero subterfúgio para alguém empreender um plano tão megalomaníaco quanto bizarro. Nesse sentido, o fingimento é disposto como sortilégio banal, engrenagem conveniente a fim de enganar com intenções maléficas, não para isolar circunstancialmente alguém da realidade aterradora da contaminação atômica. O comportamento do marido de Leonora, o sumiço da menina, a dissimulação dos colegas de plateia, ou seja, todas as obscuridades servem como frágeis bombas de fumaça, ainda que Jarand Herdal estique aos trancos e barrancos a utilização de tais engrenagens como possíveis indícios de uma farsa. O final é decepcionante, sobretudo, porque é um produto do prisma mais previsível e comum dentre os tantos lançados como probabilidades efetivas. Apesar do esforço para construir a tensão, ele erra feio ao encaminhar, com rebuscamento rococó, a jornada de Leonora a um desfecho somente interessado no grotesco do homem.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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