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Sinopse

A Argentina é varrida pela ditadura militar nos anos 1970. Homens e mulheres desaparecem por se oporem ao novo regime. Ciente dos perigos, um casal de militantes leva os dois filhos para uma casa de campo, lá onde assumem novos nomes.

Crítica

Kamchatka, para quem não conhece, é uma pequena península encravada no norte da Rússia, próxima à Sibéria. Do tamanho do Japão, é banhada pelo oceano Pacífico e pelo Mar de Bering e de Okhotskoe. Seus maiores motivos de orgulho são a alta quantidade de ursos (a maior população de ursos pardos de toda a Eurásia), salmões (a maior concentração de salmões selvagens do mundo) e vulcões (Kluchevskoy é o mais ativo de todo o continente, localizado no maior cinturão deste tipo de toda a Rússia). No entanto, a região sofre com a constante presença militar no local, o que agrava problemas como a poluição, e a escassez de habitantes, com um registro de 1 residente por quilômetro quadrado. Ou seja, é um lugarzinho perdido no fim do mundo, esquecido por quase todos, ideal para quem quer se esconder ou se refugiar. E é lá onde estão também os sentimentos vividos em Kamchatka, sucesso argentino que teve uma passagem fugaz pelos cinemas nacionais e merece ser descoberto.

A trama é simples: dias após o golpe militar que cerceou as liberdades individuais no país, um casal precisa se refugiar com os filhos pequenos até que tudo se acalme. O pai (Ricardo Darín) e a mãe (Cecília Roth) encontram numa casa nos arredores de Buenos Aires o lugar ideal para levar a vida em família na mais possível normalidade, ao mesmo tempo em que refazem seus planos e estratégias. É preciso combinar esperanças por um mundo melhor com a segurança familiar. Ao mesmo tempo, preocupam-se em não estragar as descobertas e as expectativas dos pequenos, que se encontram justamente numa idade tão cara e preciosa. É comovente perceber as intenções dos pais, suas preocupações e ansiedades, vivendo uma situação tão conturbada diante de duas vidas que nada mais querem além de ter seus pais por perto e de se aventurarem pelo mundo que os espera. É instigante, ainda que intrigante, vivenciar essa realidade através dos olhos do pequeno Harry (Matías Del Pozo), o primogênito. Enquanto o caçula encara tudo como uma grande brincadeira, o outro se encontra numa fase em que as andanças e alterações ao seu redor começam a se fazer presentes, as revelações captam sua atenção com mais vivacidade e os questionamentos são mais constantes. Ele sabe que há algo errado e que está prestes a viver momentos singulares na história dele e daqueles ao seu redor – mas como ter essa compreensão e, ainda, como se comportar diante dessa espera, quando a criança que há dentro de si permanece tão viva e forte?

Pai e filho tem um entretenimento particular, o jogo conhecido no Brasil como W.A.R., no qual o mundo é divido em estados e os jogadores lutam pelo controle da maioria. Harry sempre perdeu para o pai, mais experiente e atento. Porém, chega o dia em que o amadurecimento se faz notar em todos os campos, inclusive no tabuleiro. Naquela ocasião, quando o pequeno acreditava dominar o mundo ao seu alcance e restava ao progenitor apenas manter a resistência na pequena Kamchatka, a real situação se faz clara: por mais longe que ousemos ir, sempre haverá um lugar especial onde estaremos seguros e rodeados pelo calor de quem nos ama. O cinema argentino tem demonstrado nos últimos anos, a cada novo trabalho de destaque internacional, uma sinceridade única, além de coragem suficiente para olhar para suas próprias feridas com sabedoria e humildade. Os exemplos são muitos de títulos diversos que vem conquistando plateias e corações por onde passam. Até os críticos mais ferrenhos têm baixado suas reservas em relação ao nosso vizinho turbulento e percebido que sua produção é o melhor espelho que os hermanos têm para refletir suas mudanças e percepções sobre esse mundo em constante movimento.

Kamchatka é um bom exemplo dessa linhagem, e está mais próximo de nós, brasileiros, do que imaginamos. Escolhido para concorrer ao Oscar 2003 na categoria de Filme em Língua Estrangeira pelo seu país, terminou sendo preterido, mesmo destino do nosso Cidade de Deus (2002). Porém há mais aqui do que o verniz hollywoodiano poderia perceber. Com um elenco que se move como um motor em ótimas condições, com cada peça em um lugar essencial numa engrenagem em que nada é supérfluo, e um diretor (Marcelo Piñeyro) que demonstra uma habilidade notável em seu trabalho, este filme é uma amostra do bom cinema no sentido clássico do termo, que traz ao seu público sentimentos válidos e emoções verdadeiras. Às vezes isso pode significar pedir demais, mas para quem tem ciência de onde encontrar Kamchatka trata-se apenas de realizar um sonho há muito acalentado.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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