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Sinopse

Às vésperas da Primeira Guerra Mundial, o Duque de Oxford pretende afastar o filho da batalha, mas o garoto deseja se alistar a todo custo. Dotado de influência entre os líderes da Inglaterra, Alemanha e Rússia, o nobre tenta impedir que o conflito continue, até perceber a existência de uma força maligna capaz de provocar milhares de mortes. Surge a ideia de criar uma agência secreta, agindo nas sombras em nome da paz.

Crítica

Em primeiro lugar, é preciso alertar que King’s Man: A Origem (2021) se separa radicalmente dos filmes anteriores da saga. Poucos spin-offs se arriscam por um estilo tão diferente das obras que garantiram sua existência. Desta vez, some a diversão desbocada e sangrenta de Kingsman: Serviço Secreto (2014) e Kingsman: O Círculo Dourado (2017). As intensas cenas de luta, com a câmera posicionada no meio da ação, movendo-se junto aos corpos e às balas, também desaparecem. Mesmo os aparatos tecnológicos improváveis, e a importância conferida à alfaiataria e ao uísque estão ausentes. Se não soubéssemos que Matthew Vaughn, diretor das histórias precedentes, segue no comando, poderíamos acreditar que a franquia sofreu um brusco reposicionamento de marketing. Entra em cena uma produção solene, desprovida de humor, apropriando-se de passagens clássicas da Primeira Guerra Mundial para exaltar a coragem dos soldados. No início do século XX, antes do serviço clandestino de proteção, havia somente o Duque de Oxford (Ralph Fiennes), cujas habilidades de luta e de estratégia foram fundamentais para transformar o destino da sangrenta guerra. 

O roteiro se dedica a uma rara releitura de fatos essenciais à contemporaneidade. Os criadores poderiam inventar batalhas imaginárias entre potências fictícias, mas preferem se ater a dados verídicos, em especial, o assassinato do Arquiduque Francisco Ferdinando pelo estudante sérvio Gavrilo Príncipe em junho de 1914, em Sarajevo, detonando a primeira grande guerra. Lênin, Hitler e outras figuras reais serão acrescentadas à mistura, porém com uma liberdade de recriação digna dos devaneios de Quentin Tarantino. Pela perspectiva de Vaughn, os combatentes britânicos e norte-americanos recebem um tratamento realista, encarnando soldados esforçados e corajosos, que agem de modo incorruptível em nome da paz. Já os líderes alemães, russos e escoceses adquirem características monstruosas e sobrenaturais: Rasputin (Rhys Ifans) se converte num monge de olheiras profundas, apetite sexual voraz e conhecido pelas danças macabras de encantamento. Por sua aparência, ele remete aos vilões dos filmes de Harry Potter. O vilão escocês, cuja identidade é preservada até a conclusão, apresenta traços animalescos, ao passo que os representantes alemães ostentam características sádicas, em comportamento “hitleriano" generalizado. O discurso observa o outro, o diferente, com descaso e repulsa. Apenas os britânicos são dignos de respeito nesta aventura de cem anos atrás, que carrega sem sutileza a semente da Guerra Fria.

Este tratamento provoca um impressionante desnível de tons. King’s Man: A Origem nunca sabe ao certo que tipo de longa-metragem pretende ser. A sequência nas trincheiras possui a gravidade sepulcral de 1917 (2019) — ao elogiar a bravura de Conrad (Harris Dickinson), carregando o cadáver do colega moribundo diante de um gigantesco sol nascente, o resultado se aproxima de uma paródia do gênero. Preso num desfiladeiro, precisando se erguer a qualquer custo, Orlando recria as sequências mirabolantes de Missão: Impossível, enquanto a passagem envolvendo um elevador antigo, movido por roldanas, lembra as conquistas improváveis de Indiana Jones. O ponto de vista é ambíguo: os personagens afirmam que batalhas são nocivas e desnecessárias, porque exterminam o povo e desumanizam seus participantes, no entanto, cada combatente recebe o tratamento de herói virtuoso. O grande dilema final consiste em convencer os Estados Unidos a participarem do conflito, aparentemente para solucioná-lo: a frase “Nós vamos para a guerra!”, proferida de dentro da Casa Branca, se traduz num sinal de otimismo. Adiante, o Duque relembra o slogan da produção, repetido algumas vezes: “É doce e nobre morrer pela pátria”. O cineasta lamenta as baixas, mas se encanta diante do senso de espetáculo proveniente das matanças. Julgando por sua condução, ele preferiria que ninguém morresse, mas posto que morrerão de qualquer maneira, que o façam em câmera lenta, com música triunfante e bandeiras nacionais erguidas ao fundo. 

Alguns elementos deixam um gosto amargo na iniciativa dedicada à diversão despretensiosa. O principal deles diz respeito à homofobia. Nunca houve qualquer comprovação do desejo de Rasputin por homens. Em contrapartida, nesta releitura, o monge místico se converte num gay predador, incapaz de controlar o apetite perto de “jovens garotos”, numa evocação incômoda da pedofilia — na cena em questão, Conrad ainda é menor de idade. Para derrotar o sujeito comunista e perverso, Orlando decide oferecer o próprio filho como isca, prostituindo-o ao adversário, antes de ser ele mesmo enfeitiçado. A sequência de abuso sexual, carregada de linguajar explícito e revelando a língua de Rasputin sobre a ferida na coxa do britânico, próxima da virilha, possui evidente conotação de sexo oral. Este teor se repete na luta com o filho, quando o forte adversário segura o rosto do garoto contra seu pênis. Para uma obra recatada na exposição do corpo e da sexualidade — pai e filho demonstram interesse nulo por mulheres ao longo da jornada —, a insistência em enxergar na homossexualidade uma prática agressiva, abusiva e associada à pedofilia, possui caráter repreensível. A transformação de Lênin num vilão encantador de massas, que teria preparado o terreno para a ascensão de Hitler (!), ilustra outra deturpação incômoda dos fatos. 

Por fim, o autor retira da História aquilo que lhe interessa: a coragem dos seus soldados, interpretada como primazia moral em contraste com a depravação dos inimigos. Em prol de um maniqueísmo de simples compreensão, deturpa tudo aquilo que possa soar ambíguo ou complexo. Reescrever a história dentro de uma fantasia delirante pode ser um exercício válido, contanto que se assuma a responsabilidade ética perante as pessoas, nações e episódios mencionados. O filme nunca sabe ao certo se deseja se levar a sério, ou se abraça o caráter metafórico do século XX. Ralph Fiennes demonstra um comprometimento quase excessivo ao personagem arquetípico, enquanto a produção desperdiça o imenso talento de Valerie Pachner, Daniel Brühl, August Diehl, Aaron Taylor-Johnson, Stanley Tucci e David Kross em papéis que pretende desenvolver somente na eventual sequência. Ora, a condução nunca percebe o absurdo de suas situações nem implementa o distanciamento necessário (algo que Tarantino, Missão Impossível e Indiana Jones efetuavam sem dificuldade). A jornada se encerra com um sentimento ambíguo. Ela imagina a reunião secreta de guerreiros antiguerra; cujos poderes são imensos numa sequência (a cabana na montanha) e nulos na outra (a negociação com o presidente norte-americano). Instaura-se uma rede de serviçais, gerenciada misteriosamente, em conflitos sem data específica, lugar preciso, nem circunstância detalhada. Vaughn resgata o episódio essencial à formação da modernidade, porém estima que seus pormenores seriam desinteressantes à ficção. Deste modo, sacrifica o real em nome do pop, e a reflexão em nome do entretenimento.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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