Crítica
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Sinopse
Depois de um encontro às escondidas com um atleta da escola, a jovem Carolyn desaparece. A mãe fica inconsolável, já os colegas de turma se preocupam com a ideia de um possível assassino à solta. Enquanto começam as buscas pelo paradeiro da estudante, os casamentos e namoros entram em crise devido ao trauma.
Crítica
É preciso ter muita coragem, e também controle narrativo, para criar um filme como Knives and Skin (2019). Nesta produção, a estampa de leão na camiseta de Lynn (Audrey Francis) conversa com a mulher, oferecendo sugestões durante a crise. Uma canção une todos os personagens em distintos lugares, incluindo um cadáver em decomposição. Uma mãe fareja o corpo do namorado da filha, com atenção à boca e aos dedos, tentando detectar indícios da menina desaparecida. Duas namoradas trocam presentes carregados dentro da vagina, já um palhaço faz sexo oral numa mulher grávida, prestes a parir. Estas são apenas algumas das estranhezas propostas pela diretora Jennifer Reeder, dentro de uma narrativa surpreendentemente coesa. Nas mãos de outros cineastas, estas propostas poderiam se tornar ridículas (assumidamente ou não). Aqui, por incrível que pareça, demonstram profundo respeito pela história de uma adolescente desaparecida. O humor provém do desconforto, do inesperado, diante de ações alheias às convenções: de que maneira reagir a uma mãe que prepara cuidadosamente um bolo de carne, apenas para lançar a comida contra um carro ao final do processo? Como responder à imagem de travesseiros cobertos em papel alumínio?
O projeto mergulha na linguagem do cinema de gênero por meio do distanciamento. Não somos levados a nos identificar com Carolyn Harper (Raven Whitley), a vítima sobre a qual sabemos pouco. Mesmo os personagens coadjuvantes possuem uma construção psicológica e histórica limitada: de quantos nomes o espectador se lembrará ao final da sessão? O que eles desejam para o futuro, e de onde vêm? No entanto, funcionam enquanto representações de arquétipos, tipos e funções sociais. O roteiro se estrutura a partir de ícones do imaginário norte-americano: a líder de torcida loira e virginal, o atleta popular cobiçado pelas meninas, a garota sedutora e sexualmente ativa, a nerd com a qual ninguém conversa e assim por diante. O foco se volta aos marginais: trata-se de uma escola para alunos de baixa renda, onde os pais estão desempregados e as mães sustentam bicos de garçonete apesar da gestação em fase avançada. Há tantos protagonistas negros quanto brancos, sem que isso provoque qualquer dilema racial evidente. O problema se encontra na pauperização do país, e na constatação desoladora de que os Estados Unidos falham em oferecer a prosperidade àqueles que se esforçam. Um dos discursos possíveis do filme diz respeito à falácia da meritocracia.
Reeder rebela-se igualmente contra as convenções do horror padronizado, opondo-se tanto às imagens polidas do terror comercial (It, 2017 – 2019, Rua do Medo, 2021) quanto ao trash pelo trash, ou o cinema caseiro que pretende se desculpar pelo baixo orçamento. Knives and Skin possui recursos limitados, porém encontra formas criativas de introduzir aspectos fantásticos e romper com o imaginário desgastado do cinema adolescente. Ao invés de filmar a longa retirada de um cadáver na floresta, a cineasta faz com que o corpo desapareça magicamente, num fade out. Os espaços triviais da escola, da casa de classe média-baixa e do ginásio são iluminados por uma luz neon rosa ao fundo do plano, enquanto os famosos armários metálicos dos corredores escolares contêm uma verdadeira floresta em seu interior. O kitsch se converte em ferramenta queer de subversão às normas, assumindo o artifício enquanto valor e motivo de orgulho. O mumblecore tão buscado pelo cinema brasileiro LGBT encontra um equivalente norte-americano riquíssimo em significados. Não basta usar uma câmera digital de baixa qualidade, apostar na captação tremida e filmar figuras excluídas deambulando a esmo para compor uma versão do indie: estes elementos precisam existir dentro de um conceito estético aprofundado.
Knives and Skin constitui um dos melhores exemplos do neon enquanto ícone máximo da diferença e representação do outro. No Brasil, Boi Neon (2015), Corpo Elétrico (2017), Música para Quando as Luzes se Apagam (2017), Tinta Bruta (2018) e Boca a Boca (2020) foram algumas obras a associarem as luzes fluorescentes azuis, rosas e lilases à pluralidade sexual e de gênero. No audiovisual estrangeiro, Demônio de Neon (2016), o episódio San Junipero de Black Mirror (2016), Atômica (2017) e Rua do Medo 1994: Parte 1 (2021) também surfaram no que se convencionou chamar de “iluminação bissexual”. Mas talvez o emprego mais radical deste recurso se encontre no filme de 2019, onde a luz azul-rosa vai além de criar uma ambientação erótica e gender fluid: ela se transforma em ferramenta de combate. No filme, a cicatriz deixada pela vítima na testa do agressor brilha no escuro, o sangue nas pedras se ilumina, e o beco onde é despejado o cadáver adquire contorno verde fluorescente. O crime se torna tão explícito que se ilumina, indicando a direção das provas. No entanto, demora a ser descoberto, em partes por incompetência, em partes por falta de empenho. A morte se converte em algo excitante para os personagens que fazem sexo simultaneamente, incluindo em lugares públicos, cientes do risco que correm. A forma se adequa ao conteúdo: para uma juventude libertária, um cinema libertário.
Por fim, este terror apresenta um senso de inovação valioso dentro do gênero – e particularmente raro no circuito comercial brasileiro. Reeder elabora excelentes imagens de mulheres, reunidas pela recusa em serem tocadas pelos homens (são elas que determinam como e quando ocorre o sexo), exceto pelo casal formado por duas garotas negras. As sequências do coral de meninas, cantando letras rock e pop em versão a cappella, provoca forte efeito por comentarem indiretamente as investigações criminais, ao passo que as brincadeiras de linguagem (os sussurros inaudíveis legendados na tela) solicitam atenção constante do espectador ao que está vendo e ouvindo. Ao invés de se limitarem a empurrar os conflitos rumo ao desfecho, as cenas oferecem instantes comoventes de poesia, a exemplo do pretenso suicida em cima do prédio, que nunca desejou se matar (ele apenas queria enxergar o horizonte), a interpretação conjunta da canção “Promises Promises” e um ursinho de pelúcia usando um par de óculos de grau. A diretora compreende o potencial de um horror formado menos por ameaças, sustos e reviravoltas do que pelo acréscimo de símbolos inesperados e desconfortavelmente cômicos.
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