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Sinopse

Um intelectual preso numa armadilha na Sibéria tem de encontrar meios para fugir de uma situação limítrofe.

 

Crítica

Certos termos são melhor compreendidos na sua língua original, encontrando difícil tradução para os demais idiomas. O português “saudade” é um desses casos, assim como afirma a lenda que os esquimós possuem mais de 100 expressões diferentes para designar “neve” – quem melhor do que eles para entender a que estão se referindo em todas as suas particularidades? Kompromat, expressão que dá título ao longa escrito e dirigido por Jérôme Salle, se encaixa nessa situação. Segundo se depreende da trama, esta seria a definição empregada para os documentos elaborados pela KGB, a polícia secreta russa, principalmente durante o auge da Guerra Fria. Esses visavam destruir a reputação de uma pessoa. Não se necessitavam provas reais: essas eram ‘inventadas’ de acordo com a necessidade das autoridades em questão, pois atendiam a uma lógica de que “os fins justificam os meios”. A técnica é assustadora, e não se coloca em dúvida sua empregabilidade ao longo dos anos. Porém, realidade e ficção são coisas distintas, e se uma muitas vezes abre mão da lógica em nome do absurdo – o que seriam as coincidências senão a concretização do improvável? – a outra necessita de elementos sólidos que não permitam o questionamento. Exatamente o que se percebe em falta na narrativa por aqui perseguida.

Mathieu (Gilles Lellouche, encarnando a melhor versão de um Robert De Niro francês como o homem comum forçado ao heroísmo em nome das circunstâncias às quais se vê involuntariamente envolvido, transitando com segurança entre os momentos dramáticos e as sequências mais físicas) é o diretor da Aliança Francesa em um dos lugares mais inóspitos do mundo: Irkutsk, uma das maiores cidades da Sibéria, no norte da Rússia. Ele vem enfrentando uma crise familiar – devido ao trabalho, tem pouco tempo para dedicar à filha pequena e à esposa, o que tem aumentado a insatisfação dessa, que deseja voltar à França – mas isso não o impede de se dedicar com afinco para atender às expectativas profissionais que o levaram a esse posto. Não pretende ficar lá para sempre, mas também não está disposto a apenas “cumprir tabela”: vai entregar o seu melhor, até para que uma eventual transferência se mostre merecida. Esse afinco a uma instituição de ensino e promoção da cultura, no entanto, nem sempre é bem visto, ainda mais quando diante de governos permeados pelo conservadorismo e pela negligência ao diverso e às minorias.

Salle, mais conhecido no cenário internacional pelo longa Anthony Zimmer: A Caçada (2005), thriller que foi posteriormente refilmado em Hollywood como O Turista (2010), comédia de ação estrelada por Angelina Jolie e Johnny Depp, retoma no roteiro a parceria com Caryl Ferey, de quem já havia adaptado o policial Zulu (2013). Juntos se esforçam em simplificar as implicações políticas de uma história que tem, nesse âmbito, sua mais pura e verdadeira raiz. Segundo os acontecimentos narrados em cena, Mathieu cai em desgraça por promover entre os russos algo que no ocidente seria tratado como natural (ao menos em ambientes mais cultos e elevados): durante a reinauguração de um teatro na cidade, que estaria sob sua administração, é escolhida como atração principal uma companhia de dança que, em seu espetáculo, exibe uma cena de beijo homossexual. Veja bem: o personagem não seria, ele próprio, gay. Apenas estaria ‘chancelando’ essa orientação sexual, negada por qualquer sociedade mais obtusa, pelo simples fato de ter convidado tais artistas a se apresentarem. E isso seria o suficiente para sua condenação.

Se por um lado vê-lo como ameaça é resultado de uma conclusão simplória e rasa, torná-lo de fato culpado, ao menos diante da justiça (por mais que essa seja comprada), da imprensa (por mais que essa seja tendenciosa) e da sociedade local (vítima do que lhe é oferecido justamente pela... justiça e imprensa) se mostra mais complicado. Ele primeiro é preso, alegações infundadas começam a surgir, depoimentos contrários a sua idoneidade são forjados, enfim, a teoria conspiratória é forte, e levá-la a sério exige esforço do espectador, mas também conhecimento de como as coisas funcionavam (ou ainda funcionam?) nesse tipo de regime. O que se vê a partir desse ponto é uma luta de Davi contra Golias, a jornada do inocente solitário que precisa se colocar contra tudo e todos para provar estar no lado certo da questão em debate. Isso irá incluir uma visita à solitária, prisão domiciliar, uma intrincada fuga do país, refúgio em uma embaixada no exterior, disfarces elaborados e muita sorte. Um processo complicado, que se apoia em grande parte nos dizeres “baseado em uma história real”. Como se fosse suficiente.

Apresentado como um interessante e envolvente filme de aventura, Kompromat: O Dossiê Russo tropeça justamente por conter elementos que permitiriam um desenvolvimento além daquele com o qual os realizadores se mostram satisfeitos em explorar em cena. Eis aqui uma longa caminhada de desafios e superação, e Lellouche se entrega como poucos às exigências e provações que lhe vão sendo impingidas durante essa descida ao inferno e sua subsequente recuperação e retomada do que lhe é seu por direito. Porém, há uma discussão histórica e sobre comportamento que fica relegada a um segundo, se não terceiro, plano. E o lamento se faz ainda mais pertinente diante do contexto ao qual a obra é exibida, quando os extremos se fazem presente de forma imperativa, abrindo demanda para a necessidade de se observar os intervalos entre um lado e outro. Eis aqui um homem comprometido que desejava apenas explorar a diversidade, mas que tem sua vida revirada por não se sujeitar ao desdém dos demais. Parece insólito, mas uma breve reflexão o mostra mais próximo do que se gostaria de acreditar. E essa é a maior tragédia.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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