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Kubrusly: Mistério Sempre Há de Pintar por Aí retrata a rotina do jornalista Maurício Kubrusly e de sua esposa, Beatriz Goulart. O casal reside no sul da Bahia. O filme destaca a trajetória profissional de Kubrusly, com várias imagens de arquivo da atuação dele na televisão, e conta com cenas atuais de Kubrusly, diagnosticado com demência frontotemporal. Filme de abertura da Mostra de Cinema de Gostoso 2024.

Crítica

Filme de abertura da 11ª Mostra de Cinema de Gostoso, Kubrusly: Mistério Sempre Há de Pintar por Aí é um documentário, parte sobre a carreira de Maurício Kubrusly, parte a respeito da rotina desse jornalista (diagnosticado com demência frontotemporal) na companhia de sua esposa Beatriz Goulart num refúgio localizado no sul da Bahia. E é inevitável que na comparação entre a irreverência do protagonista em suas matérias televisivas (pelas quais ficou nacionalmente conhecido) e a sua condição atual se instaure uma sensação de pesar. Isso também é reforçado pela maneira como o roteiro intercala os arquivos com os registros atuais, criando quase que naturalmente um confronto que deixa implícita a amargura. Somos apresentados a um homem antes muito afiado e erudito tendo dificuldades para distinguir aspectos corriqueiros da realidade ou ainda não reconhecendo os fragmentos de sua produção jornalística. No entanto, mesmo sendo inevitável que fiquemos desolados diante das privações de Kubrusly, os diretores Caio Cavechini e Evelyn Kuriki não reforçam o drama de modo sentimentalista. Eles estão constantemente mais empenhados em celebrar o que o homem consegue fazer apesar dos obstáculos impostos pela doença. Beatriz fala: “é preciso valorizar o que ainda se pode fazer”. E com isso ela está claramente verbalizando o que os diretores fazem em termos de abordagem.

Kubrusly: Mistério Sempre Há de Pintar por Aí é um retrato com vários pontos de foco. O primeiro e mais evidente deles é a carreira de Maurício Kubrusly recordada em flashes que geram automaticamente uma dimensão nostálgica. A rotina atual do protagonista e de sua esposa é entrecortada por momentos que justificam a fama desse jornalista absolutamente apaixonado por música, mas marcado no imaginário brasileiro principalmente por conta da irreverência. Suas reportagens espirituosas podem ser encaradas como uma maneira de tirar o jornalismo desse lugar sisudo no qual muitas vezes ele é colocado, assim flexibilizando a seriedade como premissa básica da reportagem. Pena que os diretores não atentem para essa possibilidade de encarar o humor como vetor narrativo importante, quem sabe até como forma de tornar mais interessante um relato que tende ao dramático – afinal de contas, estamos diante de um sujeito que precisa conviver com os efeitos da doença degenerativa. Caio e Evelyn têm uma abordagem bem mais ilustrativa e jornalística do que necessariamente cinematográfica, no sentido em que estão mais preocupados com a representação dos fatos do que necessariamente com a extração de algo além da informação. Desse modo, as reminiscências em forma de arquivo servem para mostrar e não para investigar, pois fornecem certos exemplos, em prol da saudade, do que Kubrusky foi.

A estrutura do roteiro é um ponto fraco de Kubrusly: Mistério Sempre Há de Pintar por Aí. Em busca de uma resposta para a indagação “do que, principalmente, fala o filme?” podemos chegar a algumas conclusões, mas dificilmente a uma que prevaleça sobre todas as demais. Em parte, ele é sobre o homem convivendo com as limitações impostas pela doença; também é a respeito do amor entre duas pessoas que encaram uma grave enfermidade de perspectivas distintas; a carreira do protagonista igualmente reivindica as atenções em determinados momentos; e até mesmo a importância da música se insinua ocasionalmente como elemento principal. Caio e Evelyn parecem tão absorvidos pelo interesse humano na história de vida do homem que dedicou a vida ao jornalismo e agora se segura como pode durante a tempestade na qual foi arremessado pela degeneração, ao ponto de perderem o foco com frequência e permitirem que o filme mude constantemente de rumo. Nesse processo, Beatriz fica excessivamente subalternizada à figura do marido, sendo enxergada basicamente como aquela que faz tudo para que ele tenha um dia a dia menos problematizado pela doença. Sabemos pouco da esposa, na verdade, apenas aquilo que ela menciona para explicar as circunstâncias nas quais conheceu Maurício. Suas potências individuais aparecem timidamente, mas sempre conjugadas a Kubrusly.

Com o aumento de incidência de doenças degenerativas nas últimas décadas, o cinema vem nos trazendo várias histórias semelhantes a essa. Kubrusly: Mistério Sempre Há de Pintar por Aí se parece em alguns sentidos com A Memória Infinita (2023), que fala do também jornalista Augusto Góngora e da atriz chilena Paulina Urrutia, ele com mal de Alzheimer e ela lutando para ser um suporte adequado. No entanto, no filme chileno há um cuidado com as demais subjetividades, mesmo que o procedimento de intercalar arquivos de um passado profissional glorioso e flagrantes do presente marcado por dificuldades seja o mesmo. No filme brasileiro falta o aspecto da investigação cinematográfica sobre memória e identidade, mas também a preservação de Beatriz como alguém de carne e osso que não deveria ser restrita ao papel de cuidadora empenhada. Sua positividade, por exemplo, e a capacidade de lidar com a situação, evidentemente, poderiam transformá-la em co-protagonista. No entanto, os diretores preferem fazer dela coadjuvante. De toda forma, o filme presta um bonito tributo a Maurício Kubrusly ao fazer um resumo de sua importância para a televisão brasileira e, principalmente, ao sublinhar a sua nem sempre destacada erudição musical. O mérito dos diretores é não ter feito um retrato apelativo e sentimentalista, mesmo o resultado sendo mais televisivo/jornalístico do que cinematográfico.

Filme visto na 11ª Mostra de Cinema de Gostoso em novembro de 2024.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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CríticoNota
Marcelo Müller
6
Miguel Barbieri
7
MÉDIA
3.5

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