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Crítica


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Sinopse

Duas amigas crescem numa comunidade innu. Mikuan tem uma família amorosa, enquanto Shaniss ainda luta contra os estilhaços de uma infância difícil. Quando elas completam 17 anos, esse vínculo sofre um sério abalo.

Crítica

A palavra é um elemento vital aos povos originários. Por meio dela, boa parte da cultura é transmitida dentro das tradições orais. Significados, inflexões, a existência ou não de equivalência entre uma língua ou outra, são nuances fundamentais às sociedades. Em Kuessipan, Mikuan (Sharon Ishpatao Fontaine) narra sua pequena epopeia em tons prosaicos, mas deixa que a poesia intrínseca à ancestralidade tempere as entrelinhas. O rápido retrocesso temporal à sua infância é importante para que tenhamos uma boa dimensão da consistência e da extensão da ligação estabelecida com a melhor amiga, Shaniss (Yamie Grégoire). Elas moram com as respectivas famílias numa reserva Innu – indígenas canadenses antes caracterizados pelo nomadismo, por força do “progresso” levados a delimitar-se nos espaços permitidos pelo usurpador. Essas meninas têm lares bem diferentes. Uma vive numa casa em que os costumes são cultivados, retrabalhados de acordo com a realidade atual, mas na qual persiste a harmonia entre os consanguíneos. A outra experimenta diariamente a turbulência de uma morada atravessada por agressões e descontroles. Adaptação e danação. Dois resultados.

O que prevalece na condução da cineasta Myriam Verreault é a sobriedade de não determinar. Ela confere terrenos generosos, sem julgamentos, aos personagens desenvolverem suas singularidades. Assim, o envolvimento com o menino branco não causa uma celeuma daquelas de paralisar a ação, capaz de criar um bolsão específico à frontal discussão sobre relacionamentos inter-raciais. Porém, os apontamentos quanto a certos obstáculos estão lá, diluídos em várias interações, nas demonstrações (in)voluntárias do racismo estrutural, na dificuldade dele compreender a essência da companheira. Nessa dinâmica, os tópicos não são problematizados ao aparecerem, acumulando-se silenciosamente até transbordarem quando as coisas não estão calmas. Shaniss, por exemplo, repete o exemplo materno e se torna uma adulta submissa aos caprichos do namorado dado à contravenção e à violência doméstica. O filme não busca uma compreensão psicológica dessa reincidência, apresentando-a como fruto da influência que a família tem nos rumos a serem seguidos pelos Innu. A concepção de Mikuan também é um indício dessa vital noção de herança. Destino ou sina?

A protagonista possui sensibilidade e entrega comoventes. Talvez sabendo-se mais estruturalmente forte que a amiga, sobretudo por ter o amparo da família que a sustenta como um pilar rígido, ela está sempre à disposição para ser útil a Shaniss. A fase adulta apenas acentua as discrepâncias entre essas jovens que podem ser lidas metaforicamente como duas possibilidades de existência feminina (não especificamente a Innu) na contemporaneidade. Mikuan pensa em seguir estudos e cursar faculdade, assim aprimorando-se. Shaniss, inclusive pela situação materna na qual se encontra, é propensa a desempenhar o papel convencional de dona de casa. Essa vocação aparentemente anacrônica é ressignificada pela beleza das palavras da amiga quando o filme se aproxima do encerramento. A poesia vê a maternidade como atenção a um chamamento ancestral à perpetuação da vida. Myriam Verreault poderia dissolver essa compreensão lírica ao longo do filme, não deixando-a somente para o final, como uma ressignificação bonita, indubitavelmente, mas que certamente ganharia em peso simbólico se percebida paulatinamente. Desperdícios pontuais que entravam a grandeza.

Kuessipan registra sensivelmente o vínculo de Mikuan e Shaniss a despeito de diferenças e acidentes de percurso. Observa, com não menos ternura, o contexto contemporâneo Innu, distanciando-se do discurso panfletário contra a discriminação dos povos originários, mas, sobre isso, cultivando um desalento substancial enquanto filigrana. Outro indício do comedimento de Myriam Verreault diante dessa realidade é a maneira de lidar com a morte repentina do jovem que tinha futuro esportivo encaminhado. Há o sofrimento, o devido peso dramático do velório, a consternação, mas uma prioridade à extensão dos estilhaços, para além da mera circunstância. Nesse sentido, é mais impactante (embora rápido e sem reverberações) o vislumbre de alguém tentando voltar a beber para lidar com a dor, isso após anos de abstinência, do que o choro aos pés do cadáver. Excetuando ruídos, tais como o rompimento abrupto do namoro e a dispersão frente a ocasiões-chave que poderiam ser melhor desenvolvidas, o filme é um bonito retrato dos incontáveis elos estabelecidos/mantidos/reconfigurados a fim de nos definir como indivíduos e frações interligadas das coletividades.

Filme visto online no 11º MyFrenchFilmFestival, em fevereiro de 2021.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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