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Crítica


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Sinopse

Uma gangue de ladrões se dedica a roubar objetos funerários e maravilhas arqueológicas. Para seus integrantes, a Quimera é o desejo de dinheiro fácil. Já para Arthur, a Quimera é uma mulher perdida nas brumas de seu passado.

Crítica

La Chimera começa com Arthur (Josh O’Connor) regressando de trem para casa, no interior da Toscana, na Itália. No cinema, geralmente esse movimento de retorno ao lar é acompanhado de uma série de expectativas e planos. Mas, não parece ser essa a tônica dominante da volta do inglês que tem um talento raríssimo e estranho: ele pressente onde encontrar artefatos fúnebres e relíquias arqueológicas, sobrevivendo assim do contrabando das preciosidades para enriquecimento do misterioso mercador Spartacus. O protagonista do novo longa-metragem da cineasta Alice Rohrwacher é o homem regresso à família que lhe resta, no caso os amigos e parceiros de crime com os quais não quer conversa no início – afinal de contas, eles o deixaram para trás, à mercê da polícia que o encarcerou. No entanto, o filme não remói por muito tempo esse ressentimento do filho pródigo que a casa torna (um paradoxo, pois estamos falando de um estrangeiro). Rapidamente, as ressalvas dão lugar à velha camaradagem, como se não fosse possível permanecer durante muito tempo “de mal” com seus companheiros. A imagem tem uma textura granulada que nos remete diretamente aos anos 1970/80, sensação acentuada pelo lindo trabalho conjunto da direção de arte assinada por Elisa Bentivegna e da direção de fotografia a cargo de Hélène Louvart – a mesma do brasileiro A Vida Invisível (2019).

Arthur vai se readequando à geografia da qual a temporada na cadeia o privou. E essa localidade é obsoleta, repleta de cenários caindo aos pedaços que revelam em suas fundações e paredes a passagem do tempo. O protagonista de La Chimera vive de saquear os túmulos alheios, mas não é apenas no exercício de sua atividade de sustento que ele enfrenta a morte. Suas lembranças são frequentemente atravessadas pela imagem do grande amor que não mais está ali (não é muito difícil imaginar o que tenha acontecido com ela). A ex-sogra, Flora (Isabella Rossellini), parece viver em outro tempo, se referindo os mortos como se eles ainda andassem na terra dos vivos. O casarão onde Flora mora é o principal desses lugares que contam com o decurso do tempo impresso nas paredes indicativas da finitude. A casa de Arthur também sinaliza isso. No entanto, a decadência não é apresentada estritamente a partir do que tem de melancólico, pois também se trata de uma moldura que enquadra personagens e situações cativantes por sua singularidade. As filhas de Flora, grupo quase cômico de mulheres com comportamento fútil, a jovem aspirante a cantora explorada como empregada doméstica não remunerada e a malandragem do time auxiliar de Arthur para encontrar os artefatos que garantem o pão. Existe uma excentricidade na constituição desse panorama humano, que torna o filme doce e peculiar.

Se em Lazzaro Felice (2018), Alice Rohrwacher fez uma espécie de crônica da inocência a partir do personagem bondoso cercado de sordidez por todos os lados, desta vez a cineasta italiana utiliza a experiência do protagonista para destrinchar a morte. Assim como no filme citado, ela novamente traz à trama um quê de Feios, Sujos e Malvados (1976), especialmente no que diz respeito a essa concepção familiar cheia de tipos marginalizados e exóticos. Josh O’Connor está excelente interpretando Arthur, homem que fareja os mimos deixados séculos atrás aos desencarnados, imprimindo nos seus gestos e no semblante um pesar que perdura como abatimento do qual não há escapatória. Como seu contraponto, surge Itália (Carol Duarte), a personagem brasileira aparentemente explorada por Flora, mas que na verdade esconde um enorme segredo justificativo do porquê de tanta subserviência. Enquanto Arthur tem um jeito pesado, sendo quase um morto-vivo transitando pelas ruas e evitando contatos humanos mais profundos, Itália é solar, apesar de todos os desafios e encargos impostos por seus pequenos dependentes. Aliás, Carol Duarte é a outra ponte entre La Chimera e A Vida Invisível – filme de Karim Aïnouz no qual estreou nas telonas. Sob o comando de Rohrwacher a brasileira demonstra que tem qualidades para almejar uma carreira internacional. O primeiro passo está bem dado.

Em algum sentido, La Chimera também fala da saudade como uma âncora. Arthur está preso à imagem da garota de vestido ligado à terra por um fio. Da mesma forma, Flora não admite a realidade dolorosa que está na cara por conta do apego à imagem da mesma jovem, a sua filha. Não à toa, os dois carregam mais pesarosamente esses signos da morte, enquanto coadjuvantes como Itália são a esperança de que o presente pouco auspicioso possa se transformar num futuro melhor. Alice Rohrwacher faz um filme repleto de fantasmagorias, incluindo as do próprio cinema. Coincidência ou não, a tomada da praia deserta ao amanhecer remete a uma cena semelhante de Os Boas Vidas (1953), enquanto a estátua transitando pelos ares é alusiva a um dos momentos mais icônicos de A Doce Vida (1960), entre outros filmes de Federico Fellini citados. As quimeras do título são esses fantasmas que atravessam regularmente a trama, sejam os entes saudosos dos personagens ou essas evocações da tradição do cinema italiano. De um lado, temos personagens que violam o passado em prol do presente (ninguém ali consegue mais do que uns trocados para continuar sobrevivendo). Do outro lado, aparecem iniciativas como a da cooperativa feminina que resolve conservar as paredes gastas para imaginar um futuro. São mundos inconciliáveis, tanto que Arthur tem noção de não pertencer aos projetos de amanhã, pois está excessivamente aferrado ao ontem, seja como usurpador ou um sofredor incorrigível.
Filme visto durante a 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (2023)

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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