Crítica
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Sinopse
Indícios apontam à possível localização de um santuário que o psicólogo e artista plástico Mario Poggi chama de La Chucha Perdida de los Incas. Então, começa a busca por uma civilização perdida.
Crítica
O documentário La Chucha Perdida de los Incas (2019) parte de uma hipótese ousada: para o diretor Fernando Gutiérrez, as sociedades são estruturadas em torno do sentimento de orfandade. Os adultos estariam em constante busca de uma figura paterna, seja ela religiosa (uma divindade, padre ou pastor), política (presidentes e reis) ou de paternidade biológica. “Afinal, é o pai quem põe moral na família”, conclui, após revelar imagens de si próprio quando criança, no colo do tio que assumiu a função de pai. O cineasta estima que nossos regimes de crença, nossa ideia de liderança, de honra e de valores provêm de um ideal masculino, razão pela qual ele elege o artista plástico Mario Poggi como figura paterna simbólica. Quando o homem morre, Gutiérrez decide honrar sua memória ao retomar a investigação do falecido a respeito de uma suposta gruta escondida, onde haveria a imensa construção de uma vagina, com grandes e pequenos lábios – a “Xoxota Perdida dos Incas” do título. Ironicamente, a busca por honrar a imagem paterna passa pela jornada rumo ao sexo feminino.
Caso se ativesse apenas a este episódio, o filme já resultaria numa experiência curiosa por si própria. No entanto, a busca arqueológica constitui apenas o ponto de partida através de uma investigação ampla por um sistema de crenças, crendices e superstições, entre o fantástico religioso e o fantástico conspiratório. Uma vez encontrada a tal Xoxota lendária (numa cena curta e anticlimática), o jovem cineasta decide retratar cultos à fertilidade incluindo capacetes gigantescos de glandes douradas, além de homens que dedicam sua existência a espalhar teorias sobre extraterrestres (vendendo o DVD “Minha viagem num OVNI ao planeta amarelo”), e teses a respeito da abdução humana por Alfa e Ômega, incluindo a presença de um cordão umbilical mágico. A porta de entrada para este universo se encontra no exotismo: Gutiérrez escuta com igual curiosidade as hipóteses mirabolantes envolvendo a alma e as vidas em outros planetas. Ele mergulha sem freios neste caldeirão de fé desprovida de razão: as pessoas acreditam porque desejam acreditar.
É possível afirmar que a vontade de crença se converte na pulsão primária destas pessoas, num movimento semelhante àquele do cinema – afinal, diante de uma ficção, aceitamos acreditar numa mentira. O diretor tenta compreender a paixão de seus conterrâneos por histórias, independentemente de provas. Em tempos anticientificistas, quando os indivíduos se tornam incapazes de dissociar fatos de opiniões, o projeto fornece uma representação delirante da psicologia humana e dos fenômenos de massa. A direção abraça com prazer o humor decorrente do absurdo e do improvável, encarados com seriedade pelos personagens. A câmera filma rituais e cultos, DVDs e CDs com ensinamentos transcendentais, além de propagandas de televisão particularmente kitsch. Esta ideologia possui uma estética própria, misto de infantilidade (os tons pastéis, os desenhos lúdicos) e de uma concepção fetichista da tecnologia (o neon, os capacetes com luzes). Durante metade do filme, o espectador deve se sentir passeando por um parque diversões, repleto de atrações azuis e rosas que piscam e fazem barulho. Sem rir destas crenças, nem aderir às mesmas, o autor as acompanha com o vigor de um adolescente folheando o Guia dos Curiosos, a Superinteressante e publicações similares.
Apesar do evidente valor do ineditismo e da excepcionalidade (quantos filmes são atacados porque “não apresentam nada de novo”?), La Chucha Perdida dos Incas proporciona uma experiência mais curiosa do que complexa. Deslumbrado com tantas descobertas espetaculares, e podendo recriar cenas de rituais na floresta, e encontros numa base extraterrestre, Gutiérrez consagra pouco tempo à reflexão decorrente deste material. A narrativa soa desconexa, saltando entre temas distintos sem concluir as ideias anteriores, nem propor um fio condutor único. Nota-se a indecisão do cineasta quanto aos objetivos conceituais, visto que a tese sobre a paternidade se limita ao pano de fundo. Conforme a trama avança, a montagem introduz uma quantidade crescente de cenas fabricadas pelo diretor, muitas delas cômicas, ainda que deslumbrantes em seu devaneio estético. Enquanto proposta assumidamente psicanalítica, a obra serve de porta de entrada aos sonhos, livres dos freios do super-ego e também da lógica clássico-narrativa. Documentários raramente se prestam a uma viagem simbólica tão próxima da abstração.
Por fim, é provável que o projeto impressione mais do que instigue. Ele possui embalagem chamativa, condução inesperada e evidente esmero na construção das imagens. Em paralelo, Gutiérrez demonstra saudável capacidade de diálogo com a diferença em tempos histéricos. No entanto, a obra possui dificuldade em estabelecer um ponto de chegada. Uma dezena de sequências hilárias, a exemplo da vinheta religiosa ao som da trilha de Carruagens de Fogo, e da animação explicando uma tese conspiratória, diverte tanto quanto uma reportagem acerca de algum evento desconhecido. Em última instância, o interesse não se encontra em conhecer estas realidades, mas em contemplá-las pela distância da norma. Observa-se os pensamentos à margem do cristianismo e da ufologia com a régua do conhecimento formal: rimos destas pessoas por dizerem algo diferente que esperaríamos delas, assim como rimos de cachorros andando em duas patas, ou de crianças superdotadas ostentando conhecimento de adultos. Para o bem ou para o mal, a sessão se assemelha a uma visita ao circo. Entretanto, após ver a mulher barbada, os palhaços e o homem forte, o diretor se mostra incapaz de associar esta jornada mágica à sociedade contemporânea. A figura do pai não retorna na conclusão para impor ordem à bagunça criada pelo filho.
Filme visto online no 11º Festival Internacional Pachamama: Cinema de Fronteira, em maio de 2021.
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