Sinopse
A Cozinha: Numa cozinha movimentada da cidade de Nova Iorque, nos Estados Unidos, culturas diferentes se misturam na correria pelo almoço. Selecionado para o Festival de Berlim 2024.
Crítica
Alonso Ruizpalacios ganhou o circuito internacional ao dirigir, em 2018, o “segundo” melhor filme do seu país naquele ano: Museu, estrelado por Gael Garcia Bernal. Exibido no Festival de Berlim (de onde saiu com o Urso de Prata de Melhor Roteiro) e validado posteriormente com 14 indicações ao Prêmio Ariel (o Oscar mexicano) e outras seis ao Fénix (maior reconhecimento do cinema latino-americano), foi eclipsado em grande parte nestas e em outras cerimonias por Roma, de Alfonso Cuarón, lançado na mesma época. Isso não impediu, felizmente, de seguir em busca por outras oportunidades para dar ao seu trabalho uma maior exposição. Assim, após comandar episódios em séries como Narcos: Mexico (2018) e Outer Range (2022), volta às telas com La Cocina, título que fala tanto da sua origem como do destino de muitos dos seus compatriotas, que apostam nos Estados Unidos como solução de grande parte dos seus problemas. A questão e que, entre um ponto e outro, há muito pelo que lutar e sofrer, uma jornada não desprovida de caos, intensidade e paixão. Tal qual este filme, que se por um lado acerta em explorar com energia cada um destes sentimentos, ao mesmo tempo tropeça em um ou noutro ponto por não conseguir dosar o espaço que tais elementos ganham em sua trama.
Baseado na peça homônima de Arnold Wesker – cuja primeira adaptação para o cinema, The Kitchen (1961), foi dirigida por James Hill e ambientada originalmente no West End londrino – La Cocina se passa nos bastidores de um grande restaurante turístico no Times Square, coração de Nova York. No centro dos acontecimentos está um casal – ela garçonete, ele cozinheiro – e os acertos e desencontros entre os dois ao longo de um dia de muito trabalho e escasso tempo para refletir sobre o que está se passando ao redor deles. Dito assim, a impressão é a de se estar diante de mais uma versão de Frankie e Johnny (1991), que no cinema foram vividos por Michelle Pfeiffer e Al Pacino inspirados na montagem escrita por Terrence McNally. O argumento de ambos é bastante similar, ainda que a condução de suas histórias se diferenciem principalmente pelo tom assumido: enquanto uma aposta no romance e na desilusão (McNally), a outra investe no comentário social e na paranoia da sociedade contemporânea (Wesker). Dois conceitos perseguidos com sucesso por Ruizpalacios, ainda que nem sempre acompanhar tal percurso se demonstre o mais agradável dos passeios.
Para começar, causa estranhamento perceber a hesitação do diretor em entregar seu filme aos verdadeiros protagonistas. Leva-se quase meia-hora para que Pedro (Raúl Briones, da série Os Enviados, 2021-2022, em performance contagiante) e Julia (Rooney Mara, bem mais solta do que de costume) finalmente ganhem o centro da tela – ou mesmo cheguem a dar as caras. Até lá, quem ocupa as atenções é a jovem Estela (a novata Anna Díaz), como uma recém-chegada na cidade grande que vai até o The Grill em busca de uma oportunidade de trabalho, assim como tantos outros iguais a ela fizeram antes. Ou seja, por mais que seu drama seja convincente, é somente colocado como uma porta de entrada para o espectador adentrar no universo no qual o enredo irá se ambientar, um recurso didático e, portanto, reiterativo. São opções como essa, que funcionam em certa medida junto a uma audiência despreparada, mas cansativos frente ao cinéfilo atento, que diminuem o potencial de uma obra de inegável força, mas aparentemente receosa em se assumir como tal. E, quando enfim o faz, sua grandiloquência se mostra tão desmedida que rapidamente se confirma enfadonha, por mais hipnotizante que se mostre nos instantes iniciais (a sequência do alagamento na cozinha é um bom exemplo).
Pois bem, uma vez que Estela é deixada de lado, a relação entre Pedro e Julia deveria ser suficiente para garantir os interesses: ela está grávida e deseja interromper a gravidez, ele tenta demovê-la da ideia, mas para assumi-la por completo como sua esposa precisa antes conseguir seus papéis e regularizar sua situação no país. Esse imbróglio, por menos original que seja, quando abordado com propriedade pode se desdobrar que diversas frentes (ele gosta mesmo dela ou está lhe usando? O quanto ela está sendo sincera com ele? Até que ponto os dois estarão dispostos a ceder para se encontrar no meio do caminho? O que dizem um ao outro corresponde ao que de fato sentem?). Mas falta a Ruizpalacios confiança nesse potencial. Assim, se introduz um outro gatilho, não mais do que um McGuffin para que a engrenagem, enfim, se coloque a girar: mais de US$ 800 sumiram do caixa na noite passada, e agora cada um dos empregados é um suspeito em potencial. Há uma investigação em curso, e o fato de Pedro ter surgido com o dinheiro que Julia precisa para pagar pelo aborto não conta a seu favor ao se declarar inocente. Mas esta desconfiança é meramente ocasional, ou reforçada pelo fato de se tratar de um imigrante ilegal? E se ela acredita na possibilidade dele ser o culpado, por quê aceita o que lhe é entregue? Mais importante: o drama vivido no íntimo desse casal ganha reflexo no dilema enfrentado naquele dia específico, ou trata-se apenas de uma coincidência? Os gritos, acidentes, desculpas, piadas e mentiras que vão se acumulando ao longo dessa jornada fazem algum sentido, ou seriam apenas consequências entre o dito e o apenas implicado pelos amantes?
Filmado em um belíssimo preto e branco e registrado através de uma câmera (cortesia de Juan Pablo Ramírez, de O Último Vagão, 2023) que nunca se cansa em explorar cada esquina de um cenário viciado, mas, ao mesmo tempo, inesgotável enquanto fonte de recursos, La Cocina vai felizmente além do que seu título – tão direto quanto reducionista – pode dar a entender. Se o realizador por vezes abraça rumos desnecessários que apenas reforçam o que já havia sido apontado – a discussão no beco dos fundos sobre sonhos, por mais bonita que seja, pouco acrescenta ao que vinha sendo discutido desde o começo – quem paga por isso é o conjunto, que se estende por mais de duas horas de duração. Assim, o que resulta acaba tendo sua força esmaecida, algo a se lamentar visto que o debate poderia gerar impacto ainda maior caso deixasse tantas curvas e atalhos de lado e optasse por se concentrar naquilo que de fato lhe compete: a profissão enquanto meio de transformador, a família (independente de sua forma) como base de tudo e, por fim, a imagem associada a um discurso que não pede licença como receita de um cinema inquieto e provocador. Faltou dosar a medida de cada uma das partes reunidas. Nada que prejudique o todo, por mais que se aumente o nível de exigência daqueles que deste decidirem se aproximar.
Filme visto durante o 74º Festival Internacional de Cinema de Berlim, na Alemanha, em fevereiro de 2024
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