Sinopse
Em Laf, Caterino, um operário simples e rude da Ilva de Taranto, na Puglia, é recrutado pelos executivos da empresa para espionar seus colegas e denunciar trabalhadores problemáticos. Na busca por motivos para suas denúncias, ele acaba sendo transferido para o prédio onde descobre que o aparente paraíso é uma estratégia perversa para quebrar psicologicamente os trabalhadores. Premiado no David di Donatello 2024.
Crítica
Talvez porque as pessoas estejam um pouco carentes de heróis ou mesmo em virtude do aumento das leituras binárias de mundo, os protagonistas maus caráteres tem se tornado mais raros no cinema. Tanto que de tempos em tempos volta a velha e encardida discussão sobre a validação de atitudes reprováveis se elas estiverem em evidência. Onde já se viu pensar que o ato de mostrar um comportamento escroto significa endossá-lo automaticamente? Em LAF, filme selecionado para o 19º Festival de Cinema Italiano no Brasil, o personagem principal é um homem controverso. Membro do operariado explorado da Ilva de Taranto, na Puglia, Itália, ele é apresentado protestando contra as reivindicações trabalhistas dos colegas. Os funcionários de uma empresa recentemente privatizada estão comendo o pão que o diabo amassou e, por isso mesmo, exercendo o direito constitucional de se organizarem para pensar em greve. Catarino (Michele Riondino, também o diretor do filme) está num bar tomando a sua cerveja do dia quando uma reportagem sobre essa mobilização aparece na televisão. E ele fala todo tipo de absurdo repetido pelos empreendedores como mantras escravizadores, tais como: “reclamam das condições de trabalho, pior se estivessem desempregados”. O cineasta poderia contar a história baseada em fatos a partir da perspectiva de um dos heróis, de um defensor dos pobres.
Michele Riondino opta por entregar o protagonismo a um homem tolo, ao representante de uma classe oprimida que, conforme nos disse Paulo Freire, deseja se tornar opressora porque não teve uma educação libertadora. LAF nos obriga a ficar colados nesse sujeito facilmente cooptado pelos patrões para exercer a função de leva-e-traz, o odioso alcagueta que dá uma vantagem competitiva aos patrões quando revela os planos secretos dos trabalhadores em luta. Falando assim pode parecer que Catarino é aquele tipo de figura insuportável, mas o buraco é bem mais embaixo. Quando confrontado sobre a sua falta de lealdade com os colegas, ele afirma que não é muito difícil escolher entre a colaboração que lhe permite “subir na vida” e as horas a fio limpando equipamentos pesados em condições insalubres. O roteiro assinado por Maurizio Braucci e Michele Riondino não avaliza os comportamentos desse homem e tampouco cria armadilhas sentimentais para o espectador desculpar as suas atitudes. Seria muito fácil mostrar Catarino guiado pela necessidade, por exemplo, se por acaso tivesse de tomar uma atitude difícil para proteger ou mesmo salvar alguém. Não é assim. Ele atua de acordo com a sua a falta de consciência de classe, facilmente capturado pelos discursos de uma lógica de prosperidade que somente deixa de ser uma miragem aos poderosos. Catarino é uma vítima, mas isso não o isenta.
LAF contém aquela membrana de farsa tão característica do cinema italiano. Situações dramáticas são entrecortadas por piadas, comportamentos ridículos, personagens peculiares e circunstâncias excêntricas – sem que isso enfraqueça a seriedade do que está sendo discutindo. Catarino deseja subir na vida para dar condições melhores à namorada, além de atender aos próprios anseios pessoais de evolução profissional. Sem enfatizar qualquer trajeto milagroso e transformador, Michele Riondino mostra esse rapaz lentamente sugado para o redemoinho de barbaridades que os empregadores utilizam a fim de chantagear funcionários e diminuir custos em prol da lucratividade dos acionistas. Catarino é tão ignorante que acredita ser uma espécie de premiação o confinamento na unidade Palazzina LAF da empresa onde trabalha. Trata-se de um prédio abandonado ao qual os patrões mandam os funcionários capacitados que eles desejam remanejar a funções braçais com menores benefícios. O filme encara esse ócio remunerado como uma maneira de diminuir a moral de homens e mulheres que poderiam lutar por seus direitos se estivessem motivados. Catarino até se sente bem fazendo nada o dia inteiro, continuando a espionar os demais e informando os mandachuvas, mas isso não dura para sempre. Esse indivíduo tolo que acredita estar ascendendo organicamente é apenas um joguete.
Com um discurso político alinhado ao trabalhismo, LAF apenas não é mais interessante porque desenvolve superficialmente os personagens que circundam Catarino. Em vez de aproveitar o número de pessoas e, a partir de tantas particularidades, tornar o painel humano ainda mais interessante, ele prefere fazer pontuações ligeiras a respeito da personalidade de cada um. Até mesmo por conta dessa primazia da metáfora sociopolítica sobre a observação humana, Michele concentra as atenções em duas figuras: Caterino, o anti-herói trágico que representa a maleabilidade do operariado cuja mentalidade é mais individualista do que coletiva; e Basile (Elio Germano), o encarregado de fazer a ponte entre os capitalistas opressores e a mão de obra oprimida. No fim das contas, os dois são mais parecidos do que pensam. Mesmo que Basile se ache proprietário, não passa de um encarregado com somente mais migalhas de “poder”, um profissional tão descartável quanto os peões que preenchem o chão da fábrica, justamente, porque não partem deles as decisões. Algumas situações são apresentadas e elaboradas com displicência, nem sempre o ritmo do filme é o mais adequado para combinar a farsa e o drama, mas o resultado é bom pela forma como esse chá revelação de classe é feito: sem respostas definitivas e tampouco com alguém capaz de julgar o outro sem que suas falhas venham à tona.
Filme visto no 19º Festival de Cinema Italiano no Brasil em dezembro de 2024.
Últimos artigos deMarcelo Müller (Ver Tudo)
- Prêmio ACCRJ 2025 :: Ainda Estou Aqui é o grande vencedor. Veja a lista completa - 7 de janeiro de 2025
- Cem Anos de Solidão :: Parte 1 - 7 de janeiro de 2025
- Como Ganhar Milhões Antes que a Avó Morra - 6 de janeiro de 2025
Deixe um comentário