float(26) float(7) float(3.7)

Crítica


4

Leitores


7 votos 7.4

Onde Assistir

Sinopse

Pablo tem um inesperado reencontro durante as férias em família. No processo de acessar novamente partes traumáticas da infância, ele arrasta a esposa e o filho a um redemoinho de sensações.

Crítica

Como sustentar uma narrativa baseada na ocultação de um dado fundamental? Lamaçal (2020) assume um desafio de peso: prender a atenção do espectador durante cerca de dois terços da história sem revelar com precisão os motivos que fazem Pablo (Esteban Meloni) temer tanto a presença de Miguel (Gabriel Goity) durante uma viagem de férias com a família. Na pousada, o reencontro inesperado com o homem de seu vilarejo deixa o pai de família em estado de pânico, lutando para esconder sua reação da esposa e do filho pequeno. O que teria acontecido entre o protagonista e o possível adversário? O roteiro poderia facilmente revelar o ocorrido desde as primeiras cenas, se quisesse. Entretanto, o diretor e roteirista Franco Verdoia prefere brincar com a imaginação do espectador, fornecendo gradativamente pequenos indícios. Sabemos desde o princípio que Miguel é culpado de algo grave, o que condiciona nosso olhar a cada gesto do homem corpulento, de aparência gentil. A seriedade dos fatos é sublinhada pela perturbação fortíssima no rosto do protagonista. Está lançado o jogo de adivinhações e julgamentos ao qual somos convidados a participar.

Por um lado, o grande segredo vai se tornando claro até demais: o enquadramento se fecha na virilha do adversário à beira da piscina, Pablo se apavora com a possibilidade de ver o filho perto do vizinho de quarto. Estas seriam apenas pistas falsas? Por que a insistência na comparação com porcos, que batizam o título original? Esta constitui a principal armadilha dos suspenses dependentes de revelações finais: ao alimentarem a promessa crescente de algo espetacular, correm o risco de revelar uma informação menos potente do que se esperava, ou de apenas concretizar algo descoberto com relativa facilidade até então. A produção argentina-brasileira incorre neste problema: quando os detalhes do embate envolvendo os dois homens são enfim explicitados (ainda que algumas palavras-chave nunca sejam ditas pelos personagens), talvez o espectador já tivesse desvendado o enigma há tempos. Por depender excessivamente do fator surpresa, a diluição de explicações durante a narrativa soa contraproducente, gerando um clímax menos assustador do que se pretendia. Neste caso, a narrativa precisa recorrer a atalhos de roteiro para se tornar mais forte, acrescentando conflitos extras à tensão inerente.

Por outro lado, os símbolos utilizados para construir a angústia do herói se saturam com rapidez. Inicialmente, os planos misteriosos com profundidade de campo reduzida, trilha sonora sombria e o caminhar do adversário em câmera lenta geram interessante efeito de intriga. No entanto, insiste-se com tanta frequência e intensidade nestes indícios que eles se tornam, no melhor dos casos, uma obviedade, ou na leitura mais pessimista, fatores de comicidade involuntária. Há pessoas segurando facas, músicas sobre facas no coração, papéis entregues como armas a pessoas secando as mãos no banheiro, garras ameaçadoras de uma máquina de brinquedos, chicotes, reverberação do som dos chicotes nas cenas seguintes, a paixão de Cristo, nariz sangrando, efeitos sonoros de batimentos cardíacos etc. A direção reitera algo que havia se tornado evidente desde os primeiros cinco minutos: Pablo se sente ameaçado pela presença do Miguel, visto que algo muito grave ocorreu entre ambos na infância. Uma vez que a narrativa não se desenvolve muito ao longo dos numerosos símbolos de opressão, estes se tornam repetitivos, e progressivamente desgastados. O trabalho sonoro aposta nos jump scares dignos do cinema de terror comercial, casos dos sustos com uma torneira, com porcos gritando e mesmo uma pessoa pisando num ganso – o que talvez provoque sorrisos amarelos pela solenidade na abordagem de absolutamente qualquer problema cotidiano.

A abordagem enfrenta uma contradição fundamental: quando tudo é tenso e perigoso, nada realmente o é. Seria preciso trabalhar não apenas o desenvolvimento narrativo do segredo, mas também as variações da atmosfera, podendo alternar entre cenas inofensivas, e depois asfixiantes, para então pensarmos que se trata apenas de um engano, voltarmos a desconfiar do comportamento de Pablo/Miguel e assim por diante. Ora, Verdoia adota um teor linear, com a mesma intensidade do suspense do início ao fim, o que prejudica o encaminhamento da trama. Mesmo a criança é utilizada pelo grau de irritabilidade, servindo para reclamar, espernear e tornar as cenas mais estridentes enquanto o protagonista busca manter a calma. Embora haja interações muito naturalistas entre esposa e marido (como é bom ver Raquel Karro em cena, causando impressão tão forte quanto aquela de Pendular, 2017), além do registro despojado da ótima Gladys Florimonte, funcionando como pequeno respiro, a narrativa se prejudica pela artificialidade da condução próxima de uma tragédia grega contemporânea. A maneira como Pablo encontra seu algoz por todos os lados, seja na pousada ou fora dela, sublinha o fatalismo. Em paralelo, parece ínfima a possibilidade de que o inimigo de consciência pesada durma durante uma história evocando um crime semelhante ao seu.

Por fim, acena-se a questões relevantes, destacando o peso dos traumas de infância na vida adulta. Lamaçal demonstra respeito pelas dores do protagonista, acreditando que o tempo não se encarrega de curar naturalmente todas as feridas. No entanto, a decisão de ocultar durante tanto tempo seu tema principal impede que o mesmo seja discutido pela trama: quando se verbaliza por fim o crime, o filme está se encerrando. Quaisquer reflexões a respeito serão produzidas na cabeça do espectador, caso disponha de conhecimentos suficientes para tal. Nem o embate com a esposa, fortíssimo em termos de atuação e gestos, contribui a discutir as dores recalcadas por Pablo. Paira o receio de que o grave tema seja aproveitado enquanto mero motor de vingança, ao invés de dilema sociocultural. Ao final, Miguel poderia ter sido o assassino do pai de Pablo, ou o homem que provocou a ruína familiar após um caso extraconjugal com a mãe do herói, por exemplo. A especificidade deste conflito não resulta em consequências contemporâneas à vida deste pai de família. O resultado se revela tão polido em sua produção e fotografia quanto superficial no desenvolvimento temático. Partindo de forte potencial, o projeto gira em círculos.

Filme visto online na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2020.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *