Crítica
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Sinopse
Ingvar e María são dois pastores vivendo numa planície isolada da Islândia. Eles sofrem com a morte recente da filha pequena, até o dia em que um milagre de Natal lhes proporciona uma nova e inesperada criança para cuidar. O casal abraça este presente dos céus sem imaginar que talvez estejam infringindo algumas regras da natureza.
Crítica
Por que coisas ruins acontecem a pessoas boas? A pergunta fundamental à moral cristã surge diante de tragédias: por que o Deus bondoso e todo-poderoso permitiria guerras, morte de crianças, catástrofes naturais? Pelos textos sagrados, as respostas pregam alguma variedade do conformismo estoico: “Deus não dá um fardo maior do que se pode carregar”, “Deus escreve certo por linhas tortas”, “Deus está testando a sua fé”. Em outras palavras, é assim mesmo, aceite sem questionar. Poderíamos dizer também: “Suspenda a sua descrença" - frase associada à postura do espectador de cinema. O questionamento vem à mente diante de Ingvar (Hilmir Snær Guðnason) e María (Noomi Rapace), casal gentil que cuida de suas ovelhas com carinho e sofre com a perda recente da filha pequena, Ada. María, mulher crente e de nome bíblico, vive em eterna melancolia, cercada pelo clima rigoroso, repleto de rajadas de neve que refletem seu estado de espírito. O berço da menina morta fica guardado no celeiro, junto aos animais. Há um espaço perfeito para a pequena perto da janela do quarto. Até o dia em que um milagre de Natal proporciona à dupla um novo bebê.
Lamb (2021) pode ser lido enquanto metáfora tragicômica do luto. Incapazes de aceitar a perda, os dois pastores imediatamente adotam a cria, fechando os olhos para a estranheza de seu corpo e de sua constituição. Ao invés de um novo começo, tentam corrigir o passado, batizando o rebento de Ada. Ora, conforme lembram durante um café da manhã, embora a física quântica conceba a possibilidade teórica de viagens ao futuro, ainda não traçou caminhos para uma volta ao passado. Por isso, o remendo psíquico do bebê estepe, grosseiro em sua concretude, tenta aplacar a dor do casal. A filha original tinha um rosto comum de criança, já esta porta os traços de uma ovelha. Que problema teria isso? Eles evitam tocar no assunto, e concordam na criação da pequena através de um simples gesto no olhar. Com a chegada do cunhado (Björn Hlynur Haraldsson) em casa, proíbem questionamentos - censuram a palavra, capaz de revelar o absurdo da situação. A segunda Ada representa uma tentativa desesperada de recalcar definitivamente a dor da morte. No entanto, seguindo o ditado popular, o que não vira palavra, vira sintoma. Em tempo, Ingvar e María serão punidos por rejeitarem a natureza das coisas, confrontando-se uma segunda vez à bondade desse Deus perverso.
A partir de questionamentos morais complexos, o diretor Valdimar Jóhannsson fragmenta a narrativa em capítulos de tons completamente diferentes. O início transmite o aspecto sombrio e grave das histórias de terror - algo próximo da atmosfera do recente O Farol (2019), por exemplo. Ele valoriza a trilha sonora de suspense e os longos movimentos de câmera pelas planícies cobertas de neve, enquanto mantém em segredo a estranheza do bebê. Por que os protagonistas decidem levar para casa o carneiro? O que ele teria de diferente dos outros? A demora na descrição aumenta a expectativa quanto à descoberta, e sustenta a impressão de monstruosidade. No segundo capítulo, quando o corpo de Ada é revelado ao público, a ambientação se transforma por completo: o uso ostensivo de efeitos digitais e a tentativa de trazer candura à menina disforme leva o projeto à comédia inesperada. Dentro da sala de cinema, as pessoas gargalhavam de desconforto, ou de incompreensão face ao que lhes parecia ridículo. É interessante como o poder da imaginação sempre será mais forte do que qualquer concretização em imagens: as sugestões sobre a integridade da garotinha eram potentes, porém uma vez explicitadas, o resultado se mostra aquém do horror sugerido. A placidez da bebê em roupas infantis, andando desajeitadamente, rompe com a gravidade num alívio cômico. Encontramo-nos num filme distinto.
Paira a sensação de que o autor tinha dois elementos bem definidos para a concepção do projeto: a aparição do milagre natalino, e a conclusão com uma revanche da natureza. Em contrapartida, dedicou menor atenção ao período ligando o começo ao desfecho, ou seja, o dia a dia com Ada. A mudança brusca de comportamento do tio em relação à sobrinha soa inverossímil, assim como o fato de o casal jamais abandonar o pequeno vilarejo nem receber outras visitas, razão pela qual os três personagens se convertem nos únicos cientes da existência da criança. O desenvolvimento da filha, entre animalesca e humana, também desperta questionamentos relacionados à capacidade motora, oral e intelectual. A iminência do “descobrir-se animal” de Ada se interrompe, sem surtir efeitos na trama focada quase exclusivamente na psique da mãe. Menos absurda do que a concepção de tal criatura será sua inserção sem questionamentos na vida do casal, que nunca hesita quanto à criação, nem sofre de eventuais retornos do recalcado. María consegue visitar o cemitério, observar a lápide de Ada enquanto tem outra Ada ao lado, sem que isso lhe perturbe. O segmento intermediário representa sem dúvida o instante mais fraco do conjunto.
Lamb se recupera rumo ao final, quando retoma os laços com o cinema de horror e afasta e aparência intrusa de uma comédia familiar. O término possui força e coerência, revelando a habilidade impressionante de Noomi Rapace para expressar emoções fortes sem defini-las: a mãe sente raiva, rancor, tristeza, arrependimento? Impossível determinar, ainda que o turbilhão interno seja claro ao espectador. É louvável que o roteiro não tente explicar os acontecimentos mágicos na vida de María e Ingmar, justificando-os pela liberdade da ficção - o cinema escreve certo por linhas tortas. No entanto, a passagem de tempo, do nascimento à pequena infância, mereceria melhor adequação ao mundo real. O casal sequer precisa esconder a presença da filha, já que a sociedade vizinha inexiste. Num mundo sem olhares externos nem regras sociais, os julgamentos desaparecem, e o estranho se torna normal. Resta uma obra de forte construção sonora e imagética, apaixonada pelos planos simétricos e pela fotografia implacável, dura, ressaltando os traços da natureza provedora e punitiva quando lhe apetece. Para um diretor estreante em longas-metragens, cabe valorizar a opção por um projeto tão provocador.
Filme visto na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2021.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Bruno Carmelo | 7 |
Daniel Oliveira | 6 |
Chico Fireman | 5 |
Ticiano Osorio | 7 |
Francisco Carbone | 6 |
Alysson Oliveira | 7 |
Leonardo Ribeiro | 6 |
MÉDIA | 6.3 |
Uma dúvida cinematográfica: os animais que aparecem no filme efetivamente foram expostos a sofrimento, como o filhote que recebe um brinco de identificação e se contorce de dor? Não há nenhum padrão ético a ser seguido na produção? E os partos de ovelhas realmente foram feitos pelos atores?
O vídeo me atraiu. Como vi durante a madrugada, no silêncio desse momento, a música de impacto cumpriu sua intenção: é um filme da mente humana. Sem observação. Com direito a tudo e a todo amor, dor e luto. Com o direito de adotar a ovelha. Simples assim.