Crítica
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Sinopse
Quando a esposa de Adam o surpreende com aulas semanais de espanhol, ele fica inseguro sobre onde ou como esse novo elemento se encaixará em sua vida bem estruturada. No entanto, quando uma tragédia inesperada vira sua vida de cabeça para baixo, Adam decide continuar com as aulas e desenvolve um vínculo emocional complicado com sua professora de espanhol, Cariño. Mas, será que você realmente conhece alguém apenas porque passou por um momento traumático com essa pessoa?
Crítica
O primeiro alívio diante deste projeto concebido e realizado inteiramente durante o período da quarentena da Covid-19 consiste no fato de não ser um filme sobre a pandemia. Os dois únicos personagens em cena se encontram em frente às telas de dispositivos móveis da primeira à última cena, porém existe uma boa razão para isso: eles são professora e aluno num curso de espanhol à distância. A integralidade da trama ocorre durante estes encontros que extrapolam em muito a esfera da relação didática. Segundo alívio: o retrato das comunicações virtuais evita a saturação de redes sociais, trocas de mensagem escritas na tela e demais recursos que ainda soam artificiais no cinema contemporâneo. Os protagonistas poderiam deixar mensagens escritas um ao outro, porém sempre optam pela gravação em vídeo. Em outras palavras, embora Cariño (Natalie Morales) se encontre na Costa Rica, e Adam (Mark Duplass) esteja nos Estados Unidos, a interação entre eles se faz da maneira mais presente possível, incluindo o tom de voz, a expressão facial e a fala ao vivo. Morales, enquanto diretora, evita a crítica sobre a nossa presença constante diante das telas.
Language Lessons (2020) se inicia como uma singela comédia de costumes, incluindo quiproquós comuns à farsa: Adam recebe as aulas de presente do marido, e depara-se com a professora antes de entender quem é a jovem mulher do outro lado do tablet. Ela demonstra incômodo face ao homem de pijama – a surpresa acaba valendo para ambos. O roteiro poderia se ater aos pequenos inconvenientes das reuniões em nossas casas, incluindo a câmera que se abre a algum momento de intimidade, as dificuldades de conexão e compreensão. Todos estes elementos estão presentes, no entanto, a cineasta não tarda a oferecer guinadas inesperadas por meio de uma tragédia pessoal. Subitamente, a leveza cede espaço à gravidade, e a perspectiva das aulas se converte numa forma de amizade muito mais delicada entre duas pessoas que jamais se encontraram pessoalmente. De certo modo, esta brincadeira com mudanças de tons e com a autoexposição condensa um paradoxo de tempos digitais: estamos ao mesmo tempo próximos demais (Adam faz aulas na cama e dentro da piscina) e distantes dos interlocutores ,reduzidos a uma imagem (vide a agressiva resposta de Cariño quando o aluno faz deduções quanto à sua vida pessoal).
Surge uma falsa impressão de proximidade ao se ignorar o dispositivo e seu caráter cênico: diante da gravação, podemos nos portar da maneira que bem entendemos. Em nossas lives, TikToks, selfies e demais recursos de autoimagem, tornamo-nos diretores de nós mesmos, criadores e criaturas simultaneamente. O caráter inconciliável entre a representação e o objeto representado confere densidade à comédia, que evita a simples paródia da pós-modernidade. Mark Duplass e Natalie Morales desenvolvem uma interação verossímil graças à familiaridade de ambos com este tipo de humor sarcástico, porém autocondescendente. Felizmente, a opção pela homossexualidade do aluno serve a eliminar a possibilidade do namoro à distância, privilegiando um boy meets girl desprovido do amor romântico – ou ainda um raro filme sobre a amizade. Ambos são capazes de fornecer uma variação expressiva a seus personagens, que se desenvolvem bastante da primeira à última cena. O espectador, intruso nesta comunicação a dois, descobre junto a um e a outro as surpresas acerca do passado familiar e do início e término de namoros. Este seria outro elemento digno de nota: a preocupação em tornar a narrativa dinâmica, apesar da rigidez do olhar diretamente à câmera.
Ao longo de noventa minutos, Morales oferece uma infinidade de cenários diferentes: várias partes da casa, os arredores, diferentes períodos do dia, além de interstícios fora do horário das aulas. Assim, as ações de duração variável tornam o filme ágil. A gravação caseira jamais implica em desleixo, nem justificativa para um baixo nível de direção de fotografia ou som: existe notável preocupação com enquadramentos, som e luz, ainda que sejam verossímeis para o ambiente onde os personagens se encontram. Os raros momentos em que o som falha ou a pixelização toma conta da imagem constituem cenas desenhadas com este propósito. Em consequência, Language Lessons possui um conceito elaborado para a gravação remota, e não apesar dela. Ainda que proponha uma comédia dramática agradável, Morales possui ambições tanto cinematográficas quanto sociais: ao longo das conversas, ela critica o preconceito dos americanos contra latinos, o machismo, o salvacionismo dos Estados Unidos e os estereótipos dos quais mulheres solteiras são vítimas. O dinheiro se torna uma questão delicada entre ambos, gerando as discussões mais complexas. Para a diretora, este não é apenas um encontro entre línguas, mas também um choque entre mundos.
Infelizmente, o projeto se enfraquece pela necessidade de recorrer a sucessivas tragédias para fazer a narrativa avançar. O primeiro grande baque, referente ao aluno, constitui motor de conflito suficiente para o longa-metragem, porém o roteiro escrito pelos dois atores acrescenta duas outras guinadas relacionadas à violência e às doenças letais. Haveria alternativas mais sutis, e menos físicas, de introduzir complexidade aos personagens e transformar os rumos da história. Pelo menos, nesta gangorra entre humor paspalhão e melodrama, tanto o elenco quanto a direção e a montagem se sustentam com eficiência. A solução encontrada para o desfecho se aproxima da fábula de otimismo excessivo. No entanto, para os espectadores imersos durante mais de um ano na pandemia de Covid-19, o desfecho proporciona um reconforto válido, sinal de que os criadores sabem estabelecer prioridades em período de crise. O pequeno filme se converte num retrato agridoce dos nossos tempos de angústia e solidão, agarrando-nos a construções mais ou menos verídicas das pessoas atrás de seus celulares e computadores. Morales possui esperanças de melhoria, sem perder de vista os problemas crônicos da sociedade onde vive. Entre ternura e alfinetadas ao pensamento norte-americano, ela estabelece uma boa comédia para o século XXI.
Filme visto online no 71º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em março de 2021.
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