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Crítica


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Sinopse

Victoria leva uma vida vazia, saindo com homens diferentes a cada noite. Um dia, ela se interessa por Jason, que não corresponde ao flerte. Disposta a conquistar o rapaz a qualquer preço, a garçonete começa a frequentar o grupo cristão liderado por ele, prestando serviços de moradias populares aos necessitados. Aos poucos, Victoria descobre os ensinamentos da Bíblia e a importância das palavras de Deus.

Crítica

Lar Doce Lar... Ou Não (2020) pode ser descrito como um filme ideológico. No Brasil de hoje, a palavra ideologia se tornou palavrão, sobretudo por parte de quem não tem a menor ideia do que o termo significa (vide as noções de “escola sem ideologia”, “ideologia de gênero” e outras aberrações). Na prática, ideologia se converteu naquele defeito percebido apenas no campo oposto (meus adversários a teriam; eu, não). Ora, qualquer filme carrega um viés ideológico, porém este romance cristão o faz de maneira mais assumida. Trata-se de um projeto de conversão, sustentando a tese de que existem duas maneiras de viver: a primeira, longe de Jesus, e portanto triste e vazia, e a segunda, plena de satisfação, dentro da Igreja. Obviamente, a protagonista constitui o caso exemplar que transita entre os extremos: partindo de uma vida de prazeres, descobre que a única chave para a felicidade se encontra na Bíblia, nos amores recatados, no respeito à palavra divina. O projeto jamais esconde seus propósitos, sendo transparente quanto ao método e ao discurso.

Assim, seria difícil rechaçá-lo por divergências pessoais. As principais acusações que se faria ao filme são deliberadas e interpretadas como virtudes pelo diretor estreante Juan Mas. No centro da trama, Victoria (Natasha Bure) é uma jovem dotada de grande autonomia sobre seu corpo e seus relacionamentos. Ela sai cada noite com um homem diferente, sem estabelecer vínculos emocionais. Para as vozes progressistas, este retrato talvez constituísse um ganho (as mulheres explorando seus corpos como bem entendem), no entanto, o olhar religioso o enxerga com desaprovação. Victoria se sente incompleta, sem saber ao certo o porquê. Fingindo ser cristã para atrair o belo voluntário do grupo caritativo local, ela descobre aos poucos o pertencimento a uma comunidade solidária, repleta de pessoas gentis que citam versículos bíblicos. Em outras palavras, a configuração que grupos feministas considerariam um retrocesso – a defesa da mulher bela, recatada e do lar – representa uma sociedade ideal aos olhos do diretor e dos produtores. Em consequência, não há sentido em acusar o filme de ser reacionário e patriarcal – ele tem plena consciência e orgulho de sê-lo.

O retorno à norma, a defesa dos sentimentos contidos e dos valores piedosos implica numa estética particular. Este é um cinema de simplificações: personagens são muito bons ou muito vazios, vítimas de catástrofes ou heróis partindo ao resgate. Os personagens coadjuvantes limitam-se a dar a réplica aos protagonistas, enquanto a família para quem se constrói a casa (uma mãe solteira com dois filhos) sequer adquire personalidade própria. Nestes casos, a moral se sobrepõe à psicologia: visto que estas figuras se dividem entre pudicas ou sexualmente vorazes, entre alegres ou tristes, perdem-se os territórios complexos da dúvida, do remorso, da nuance. Posto que Juan Mas oferece uma solução à juventude (a conversão ao cristianismo), qualquer dificuldade deste percurso é eliminada para tornar o produto mais sedutor ao público-alvo. Aliar-se à palavra divina garante, instantaneamente, a felicidade, o senso de completude, o amor do próximo e o amor romântico. Trata-se de uma estratégia de marketing: quanto mais simples for o processo, e maiores forem as promessas de recompensa, mais irresistível a oferta deveria parecer ao espectador. Ora, o cinema nunca foi uma boa ferramenta de convencimento, visto que a linguagem da arte passa por formas de compreensão distintas do sermão. Isso não impede os produtores de tentar, ainda que provavelmente preguem aos convertidos.

Nesta cruzada, oferecem imagens coloridas, subúrbios sorridentes onde todos se cumprimentam nas ruas, amores idealizados em cada esquina, crianças comportadas, mães loiras e batalhadoras (que ficam dentro de casa), e homens fortes e solícitos (que erguem uma casa do zero). A personagem fútil veste roupas estampadas de cores quentes, já os colegas cristãos se vestem de maneira discreta, com cores frias. O maniqueísmo inerente à lógica religiosa faz com que Victoria precise escolher entre dois caminhos simetricamente opostos: ou a vida de aparências, entre homens aproveitadores, ou a vida de namoricos desprovidos de contato físico (“Estamos indo com calma”, ela confessa à irmã). A trajetória busca o convencimento ao se apropriar de uma personagem “no fundo do poço” para torná-la um modelo de redenção. Nada soa mais bíblico do que a purificação por meio da culpa e do recalque. Diante da moça de batom vermelho e cabelo tingido, o par romântico cristão, Jason (Ben Elliott), sustenta um olhar apático, a boca entreaberta, a aparência de depressão e cansaço pressuposta a um homem virtuoso. Acima de tudo, ele não flerta com mulher nenhuma. São as jovens contemporâneas, caricaturas da sedução e do erotismo, que se jogam sobre o moço inexpressivo.

O suposto monopólio da caridade por parte de instituições religiosas poderia ser criticado em Lar Doce Lar... Ou Não (triste tradução brasileira para Home Sweet Home). Além de defender a ideia de que apenas Deus leva à salvação, o filme sustenta a tese de que religião equivale a bondade. Esta ideia não suportaria o mínimo teste empírico (vide a variedade de pessoas que falam em nome de Cristo hoje em dia), porém o diretor não trabalha com a lógica, e sim com a fé. Cenas como a alergia ao perfume de Megan (Sarah Kim), o acidente de carro envolvendo a casa de Victoria e o retorno da noiva interesseira (Jacqueline Leach) se revelam bastante fracas em termos de atuação, direção e montagem. No entanto, eles se legitimam pelo caráter de exemplaridade: não há um conflito desprovido de função pedagógica ao longo da narrativa. A luta pelo direito à moradia fica em segundo lugar – defende-se a caridade para apaziguar a consciência, ao contrário da revolução social. Para as mulheres, resta a impressão de que a única felicidade se encontra nos braços dos homens: vide os romances de Victoria e Megan, além da desolação de Joy (Krista Kalmus) e Elena (Aubrey Shimek Davis), abandonadas pelos parceiros. Se esta mensagem em prol da dependência afetiva consiste numa lição positiva ou não, caberá ao espectador julgar.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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