As Herdeiras
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Marcelo Martinessi
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Las herederas
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2018
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Paraguai / Alemanha / Uruguai / Brasil / Noruega / França
Crítica
Leitores
Sinopse
Chela e Chiquita vivem confortavelmente há 30 anos. Porém, ao se verem obrigadas a lidar com um problema inesperado, percebem que o dinheiro não é suficiente e começam a vender seus bens. Quando suas dívidas chegam ao ponto da Chiquita ser presa por cobranças fraudulentas, Chela começa a providenciar um serviço local de táxi para um grupo de senhoras. Enquanto se acostuma com a nova realidade, conhece a jovem Angy e juntas embarcam em uma transformação pessoal.
Crítica
Chela e Chiquita estão juntas há anos, a ponto do modo como a relação delas se desenvolve não ser motivo de questionamento para ninguém, não para quem as vê de fora, muito menos para as duas, já habituadas com o jeito de uma e de outra. Porém, quando uma delas se vê obrigada a se ausentar por dois ou três meses, como a outra irá seguir adiante? Está nesse processo de aprendizado o mote a ser desenvolvido em As Herdeiras, o longa paraguaio de maior sucesso dos últimos anos – recebeu nada menos do que 3 troféus no Festival de Berlim, entre eles o Urso de Prata de Melhor Atriz, para Ana Brun, e o de Melhor Filme pelo Júri da Crítica Internacional. Um resultado absolutamente à altura do trabalho que aqui verificamos, de forte ressonância intelectual, condizente com o momento que se vive hoje tanto na América Latina como no resto do mundo e que encontra possibilidades de diálogos em mais de um nível de entendimento e interpretação, o que atua de forma determinante na amplitude do seu alcance.
Pessoas caminham a passos lentos pela casa, observando com cuidado cada móvel, objeto ou decoração. Volta em meia perguntam “quanto custa?” ou “levando os dois, fica mais barato?”. Por um problema legal, Chiquita (Margarita Irun) se vê envolvida com uma dívida inesperada. A consequência imediata é vender tudo que possuem, para levantar fundos e diminuir o estrago. Porém, o risco de que tenha que passar um período na prisão é cada vez mais real. Com isso, quem de fato se vê em apuros é Chela (Brun). Afinal, é a outra que toma todas as decisões. É quem cuida da casa, prepara o café e conduz o carro quando precisam sair. Sem ela em cena, o que fará a fica para trás? Pode se refugiar nas pinturas que lhe ocupam tardes modorrentas, mas e além disso? Como lidar não apenas com o imenso orgulho ferido, de se ver sozinha e desamparada nessa etapa de sua vida, já tendo passado dos 60 anos, mas também – e o mais difícil – como tomar as decisões acertadas, quando há muito tempo está habituada a apenas aceitar o que lhe é imposto, sem nem ao menos refletir a respeito?
O diretor e roteirista Marcelo Martinessi entrega um filme acima de tudo feminino – porém, sem o esforço de ressonar um discurso feminista. É uma história sobre mulheres que lutam para ocupar um lugar no mundo, deixando palavras de ordem ou discursos envelhecidos de lado. Fazem isso por si, pelo que vivem e pelo dia a dia que enfrentam. Chiquita é uma sobrevivente, que se adapta às condições ao seu redor. Em dois tempos, estará mandando naquele cenário atrás das grades. Chela, por sua vez, não consegue nem dizer ‘não’ para a vizinha idosa que lhe cobra caronas nos dias de jogos de cartas. Quando percebe, virou motorista particular da amiga, ainda que nem carteira própria tenha. É uma maneira de se ocupar, ao menos. E entre tantas idas e vindas, acaba conhecendo Angy (Ana Ivanova), que prefere lhe chamar de ‘Poupée’ (boneca, em francês). É a primeira que não apenas fala com ela, mas também está disposta a ouvi-la. Aquela que repara nas unhas feitas, que conversa, que lhe dá atenção e demonstra interesse. Há um mundo maior lá fora, o qual Chela só o conhece através das frestas de portas entreabertas. Agora, nem que seja preciso escancará-las, chegou a sua vez de, enfim, descobri-lo.
Muito da força de As Herdeiras está nesta trinca arrebatadora de protagonistas. Ana Brun – que nunca havia atuado antes – carrega tudo no olhar. Suas palavras são hesitantes e, quando saem, se fazem presentes por meio de murmúrios e quase pedidos de desculpas. É quem já teve de tudo, entregue em uma badeja de prata, mas que agora precisa de acostumar com uma eventual massagem nos pés – e ainda agradecendo por isso. Margarita Irun é carinho, mas também determinação. Reconhece as fragilidades da companheira, e não irá atropelá-la por isso – mas desde que ela não fique no seu caminho. A convivência entre as duas é daquele tipo já solidificado pelo tempo, sem meias palavras, tudo partindo de uma compreensão prévia. Ana Ivanova, por outro lado, é uma verdadeira força da natureza. Não surge para conquistar, mas também não será impedida ao perceber uma possibilidade de avanço. É a que ensina pelo exemplo, dona de uma personalidade forte não a ser imitada, mas, antes de mais nada, na medida que possa servir de impulso para aquela ao seu lado.
No entanto – e felizmente – o filme de Martinessi vai além da discussão de gênero. Há muito a ser dito aqui também sobre a condição atual que se vive em uma sociedade cada vez mais conservadora, que luta para garantir direitos básicos em meio a ondas de retrocesso e posturas retrógradas e ultrapassadas. As Herdeiras leva consigo o peso de anos de silêncio, quietude e discrição, frente a um momento que, finalmente, começa a ser alterado. É chegada a hora de dar voz a quem nunca pode se pronunciar. E não será sua orientação sexual, sua idade, sua condição financeira ou social que irá fazer diferença. Chela é um pouco o espelho de tudo isso, alguém que está encontrando forças que desconhecia, e, mais do que isso, aprendendo a fazer uso delas. Sem levantar bandeiras, nem promovendo alterações drásticas. Apenas garantindo o seu espaço. Seja aqui ou em qualquer lugar onde possa, enfim, ser mais do que feliz: plena.
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