Crítica
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Sinopse
Três mulheres foram vítimas de constantes agressões físicas e psicológicas por parte de seus companheiros. Porém, contrariando as estatísticas e o destino comum à maioria, elas reagiram, matando o agressor. Acusadas de homicídio, enfrentam o julgamento da Justiça, da sociedade e o delas próprias, enquanto tentam reconstruir suas vidas.
Crítica
Enquanto as vozes de duas mulheres narram histórias de violência conjugal, a câmera acompanha uma terceira mulher, prestes a entrar num tribunal. A câmera acompanha cada passo no corredor, desloca a atenção do corpo para as mãos algemadas, ajusta o foco, muda a profundidade de campo. Por mais que a câmera nervosa imprima um senso de urgência – afinal, a mulher em questão confessou ter matado o marido –, percebemos uma decupagem (ou seja, uma seleção dos enquadramentos e da imagem) impossível obter dentro do documentário. Há evidente controle do espaço e do tempo: a câmera se posiciona junto à ré, às advogadas e promotoras, perto dos jurados, sobre as mãos das escrivãs. Percebe-se então que Legítima Defesa (2020) busca combinar a especificidade dos casos documentais com a universalidade do caso fictício: enquanto duas mulheres narram seus casos pessoais de sofrimento, citando nomes dos algozes e episódios de agressão, a terceira, dentro de um tribunal simulado, trata de representar todas as mulheres em posições semelhantes.
O recurso híbrido produz um efeito particular no projeto da diretora Susanna Lira. Por um lado, a montagem paralela com duas linguagens faz com que as histórias dialoguem, uma enriquecendo a outra. Na impossibilidade de acompanhar ao vivo os trâmites legais de um assassinato em legítima defesa, a cineasta se apropria de autos reais para oferecer uma encenação. O aspecto de “reconstituição dos fatos”, em paralelo com depoimentos posados à câmera, aproxima o resultado da linguagem do telejornalismo investigativo, algo que dificilmente soa como um elogio ao cinema. Mesmo assim, neste caso, serve como complemento imagético e discursivo. Compreende-se que Lira, autora de filmes politizados, não disponha de imagens dos abusos nem de materiais de arquivo que sustentem as narrativas orais, para além de eventuais fotos de família – e nem poderia ser diferente. Por isso, utiliza a ficção enquanto material de debate: em articulação com os depoimentos comoventes de Úrsula Francisco e Daiane Cristina, o espectador tem a oportunidade de compreender de que crimes estas mulheres seriam acusadas, e quais argumentos contra elas seriam apresentados. Presencia-se, mesmo que dentro de uma construção roteirizada, um debate jurídico a respeito da autonomia feminina.
Legítima Defesa (2020) contribui não apenas a dar voz às mulheres, geralmente julgadas e inferiorizadas em casos do tipo, mas também a discutir a raiz deste comportamento. Um dos aspectos mais interessantes do projeto se encontra no distanciamento das mulheres que, embora traumatizadas pelos crimes, conseguem detalhar calmamente a evolução dos problemas, descrevendo o amor sentido pelos ex-maridos e companheiros, distinguindo as lembranças positivas dos comportamentos gradativamente violentos. Em outras palavras, evita-se o maniqueísmo. Detalha-se o conservadorismo no que diz respeito ao sentimento de posse dos homens (adúlteros, em geral) em relação às esposas de quem exigem fidelidade e cujos corpos controlam. É interessante que as protagonistas não sejam colocadas em posição de vítimas: além de falarem em retrospecto, a partir do momento presente em que já foram absolvidas, as duas passaram a trabalhar em áreas do direito e da assistência social que permitem proteger outras mulheres de situações semelhantes. Isso significa que, mais do que uma narrativa de sobrevivência, Lira propõe uma história de empoderamento. “Ali acabaram todos os meus problemas. Ali acabou o sofrimento do meu filho”, confessa uma das mulheres a respeito da morte do marido. A diretora propõe um olhar humano a essas personagens que não se tornam objetos de estudo, e sim sujeitos capazes de controlar seus próprios discursos.
A discussão poderia ser ainda mais profunda: por mais difícil que seja encontrar mulheres dispostas a se assumir publicamente, e dentro de um filme, enquanto assassinas dos maridos, talvez a montagem respirasse melhor com um terceiro caso real equilibrando o julgamento fictício. Com um ou mais casos, o documentário ganharia em representatividade ao explorar contextos distintos, fornecendo mais opções à edição. Além disso, Lira não expande o olhar para as origens sociais do machismo em que estão estas mulheres imersas: ambas aparentam ser religiosas, mas não se investiga em que medida as crenças cristãs teriam encorajado as protagonistas a suportarem o abuso em nome do matrimônio. Da mesma maneira, não se destrincha o peso dos familiares nos sentimentos de vergonha e culpa. Em outras palavras, o documentário detecta machismos e preconceitos, porém não se arma de recursos suficientes para investigá-los. Seria igualmente importante que o filme propusesse outros momentos de liberdade sobre Úrsula e Daiane: a cena do parque de diversões diz muito sobre a inserção social das protagonistas, mas permanece rara dentro do projeto enxuto, que basicamente alterna os dois depoimentos centrais com a o julgamento encenado. Propostas poéticas externas aos casos e menos literais (menos figurativas) poderiam enriquecer a descrição psicológica das mulheres em desespero.
Ressalvas à parte, Legítima Defesa jamais busca ser um projeto maior do que é. Dotado de grande ambição e pequena produção, o filme efetua bom uso dos recursos de que dispõe, oferecendo um resultado competente, ainda que sem surpresas na imagem. Somos muito mais tocados pelo que as personagens oferecem, em termos de voz e lágrimas, do que qualquer cena construída pela direção. Em certa medida, o filme torna-se refém do que suas protagonistas têm a dizer, algo que reduz o alcance estético. Mesmo assim, torna-se ponto de partida para uma discussão mais ampla, especialmente por selecionar duas mulheres negras, em situações financeiras desfavoráveis, uma delas casada com um militar repleto de amigos dentro do aparato jurídico. Discute-se portanto a corrupção do sistema, a fragilidade superior dos pobres, das mulheres, dos negros, dos indivíduos periféricos, além da sensação de que a justiça não lhes pertence: nenhuma das vítimas possuía consciência de seus direitos, nem das consequências que enfrentariam por seus atos. A autonomia de ambas enquanto mulheres e mães ocorre em paralelo com a autonomia enquanto cidadãs, por meio da educação e do trabalho. O escopo aparentemente estreito destes casos particulares se expande para um âmbito ainda mais complexo e de fácil identificação com o espectador médio.
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