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Sinopse

Quando jovem, Leonie Brandt foge da Alemanha nazista rumo à Holanda. Devido à facilidade desta fuga, é recrutada por oficiais para se tornar espiã dos holandeses. No entanto, graças à nacionalidade alemã, passa a trabalhar igualmente para seu próprio país. Em meio a esta complicada dinâmica, tenta se firmar como atriz durante o cinema mudo.

Crítica

Leonie, Atriz e Espiã (2020) parte de uma excepcionalidade. Leonie Brandt, atriz de pouco sucesso durante o cinema mudo, passou a trabalhar como agente infiltrada tanto para os alemães quanto para os holandeses durante a guerra, numa trajetória única. Este documentário se inscreve dentro de uma linha específica de filmes que se legitimam pela necessidade de popularizar a raridade. Quantas vezes se escuta dizer, popularmente, que o episódio mirabolante de uma pessoa “deveria virar cinema”? Ou então sugerir que tal fato inacreditável “precisa ser contado num filme”? A diretora Annette Apon embarca na crença de que a arte existe para jogar luz ao improvável, o fantástico, o impressionante. Curiosamente, este tipo de raciocínio costuma resultar em grandes produções de ficção, ao invés de documentários históricos. Neste caso, a vontade de seduzir o espectador decorre menos das qualidades da personagem principal do que do acúmulo de funções aparentemente incompatíveis (uma profissão muito pública, e a outra, muito privada).

No entanto, ela esbarra num obstáculo fundamental: praticamente inexistem imagens da heroína, seja em fotografias ou filmes da época. De que maneira representar a personagem inexistente no imaginário popular, sem provas, documentos, fotos, vídeos, entrevistas? O principal recurso adotado por Apon diz respeito à busca em referências do cinema mudo, com jovens atrizes em idade de representar a biografada. Quando a narração evoca o encontro suspeito da espiã com interlocutores estrangeiros, deparamo-nos com alguma cena semelhante em produções das três primeiras décadas do século XX. Quando menciona o prazer de dançar, a prisão e o presente recebido pela filha pequena, encontramos exatamente isso: uma cena de dança, o cárcere e a garotinha de patins. Por um lado, a escolha demanda extensa busca em materiais de arquivo, algo louvável enquanto ferramenta de pesquisa. Por outro lado, as associações se tornam óbvias da primeira à última cena, esgotando o jogo da montagem. Mesmo a menção a metáforas, a exemplo de “ficar presa nas redes dos acusadores”, é traduzida por imagens literais de redes de pesca. O projeto parte da vontade de associar Leonie Brandt ao cinema mudo e ao imaginário da ficção, porém o faz de modo redundante.

Outra ferramenta diz respeito a uma entrevista encenada. Os atores Cas Enklaar e Martijn van der Veen são convidados a interpretarem um advogado e um pesquisador, a partir de uma longa conversa real destas duas figuras sobre a trajetória da heroína. A proposta seria interessante, caso a interação entre os dois homens possuísse alguma forma de verossimilhança. Ora, eles estão sentados em poltronas, oferecendo um ao outro informações de que ambos dispõem, vestidos com roupas casuais e efetuando estranhas pausas dramáticas. O dispositivo fracassa tanto na reconstituição quanto na desconstrução do texto verídico. Os talentosos atores estão desconfortáveis na indecisão entre a ficção assumida e o registro colado aos fatos. De certo modo, o impasse se estende ao projeto inteiro: Apon não apenas representa o real por trechos da ficção, como também ficcionaliza em excesso o dispositivo. Há dois atores para a entrevista, outra atriz para encarnar Leonie, e a voz da própria cineasta enquanto narradora onisciente. Ao espectador, cabe acreditar na boa vontade e honestidade da direção, visto que as provas inexistem. A atriz-espiã poderia ser uma personagem inventada, afinal, desconhecemos qualquer indício palpável de sua existência.

Em consequência, a experiência se conclui sem uma apresentação satisfatória da personagem principal. Leonie não tem rosto, voz, laços familiares, nem ambições para o futuro. As descrições aceleradas impedem a percepção psicológica desta mulher. “Ela foi presa. Seis meses depois, foi transferida”, explica a narração, evitando precisar a experiência numa cela, os sentimentos, o impacto deste período. O texto tem pressa, saltando no tempo a cada cinco minutos para dar conta da trama rocambolesca. Ao final da narrativa, sabemos para onde ela foi, em qual ano, que pessoas encontrou, porém desconhecemos a personalidade por trás destes feitos. A certa altura, escutamos: “Ela sabia demais”. Ora, ela sabia do quê, exatamente? “O comportamento dela era fantástico”, insistem os atores. Precisamos crer em todas estas sugestões: Apon trabalha numa relação de fé cênica, visto que suas fracas imagens são incapazes de transmitir significado por si mesmas. Ao invés de nos contar as qualidades da protagonista, precisaria encontrar alguma forma de representá-las em imagens, o que constitui, afinal, o papel do cinema.

Leonie, Atriz e Espiã possui um ritmo arrastado. Os fatos se sucedem enquanto a narrativa anda em círculos: todos os golpes e conquistas de Leonie resultam equivalentes e intercambiáveis, visto que ignoramos o impacto deles na personagem, e no mundo ao redor. A abrupta menção ao colapso mental da heroína surge como única maneira de concluir este longo relatório: retirando-a de cena. Sem personagem, o filme pode enfim terminar, contentando-se em ter resumido as principais passagens de uma vida. Algo que todos os documentaristas e contadores de histórias precisam compreender é que nenhuma pessoa pode ser resumida aos fatos de seu percurso. Sem subjetividade, emoções, temperamento, angústia, dúvida, desejo e arrependimento, inviabiliza-se a verossimilhança, e sobretudo, o conflito. Por esta razão, a obra holandesa produz um efeito entediante: sabemos que a espiã efetuou a ação A, e depois a ação B, e depois a ação C. As passagens acontecem por milagre, sem relações de causa e consequência, nem a influência de outras pessoas em seu percurso. Leonie se torna uma ideia, não uma personagem.

Filme visto online no 26º É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, em abril de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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