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Sinopse

Após décadas de permanência num cemitério de grande porte, as cinzas do escritor Luigi Pirandello são enfim transferidas ao pequeno vilarejo de seu nascimento, conforme dos desejos da família e do artista. No entanto, a transferência dos restos mortais é marcada por inúmeros acontecimentos surreais — alguns deles baseados nas próprias ficções do autor.  

Crítica

“Ao meu irmão Vittorio”. A dedicatória aparece no início de Leonora Addio (2021), para que o leitor se lembre que, mesmo dirigindo sozinho, Paolo Taviani jamais se afasta do irmão com quem partilhou sua trajetória cinematográfica. A morte será o tema da obra, iniciada com um Luigi Pirandello envelhecido, em seu quarto fantasioso de aparência teatral, pensando no fim de seus dias. Um episódio verídico domina a narrativa: as cinzas do escritor, falecido em 1936, foram transferidas de Roma ao pequeno vilarejo onde morreu. Pelo caminho, a urna de uma personalidade famosa (e controversa por suas posturas políticas) gerou reações fortes, entre admiração, raiva e repulsa. Como lidar com um cadáver, ou com o material acinzentado que pretende representá-lo? Devemos enxergar, naquelas partículas sem rosto nem identidade, o escritor admirado? De que maneira podemos dissociar Pirandello, o ícone que poucos jovens italianos leram de fato (segundo o filme), do corpo condensado na urna funerária? Através deste símbolo, o cineasta questiona a própria representação cinematográfica, ou a capacidade da imagem em aludir a algo distinto de si própria — em última instância, o decalque platônico entre a ideia e sua concretização. Você gostaria de se aproximar destes restos mortais, por terem pertencido a uma celebridade, ou ficar à distância, por representarem a finitude e a putrefação? Estranha-se que os maiores artistas possuam um corpo tão frágil e perecível quanto o nosso. A morte se torna a última ferramenta de igualdade entre os indivíduos.

Além disso, existe um aspecto de apreensão quando um autor de 90 anos, tendo perdido recentemente o irmão, dedica um projeto inteiro ao debate acerca da morte. Nestes casos, críticos de cinema consideram quase automaticamente o resultado um “testamento” de seu criador, passível de nos deixar a qualquer momento. Ora, não seriam todas as obras testamentos de seus autores, ou de suas épocas? Afinal, sempre podem ser a última de seu artista — apenas a indefinição da data de nossa morte nos impulsionaria a viver de fato. De qualquer modo, Taviani afasta o teor solene em prol de uma pequena obra solar e divertida. Baseando-se livremente em fatos, imagina o transporte tragicômico das cinzas de Pirandello, ao longo do qual a urna se perde, o conteúdo se entorna, a igreja se recusa a batizar um vaso, e a tripulação de um voo se assusta ao descobrir o conteúdo do caixote de madeira. Bela e singela ideia: embora falecido, o escritor efetua nova aventura cômica, assim como aquelas que criou em vida. Ele se transforma no último personagem de suas criações divertidas, um protagonista contra a própria vontade. O artista está presente e ausente, seja pelas cinzas, seja pelo imaginário: fala-se nele o tempo inteiro, ainda que o rosto e o corpo sejam ocultados. Apela-se à memória: o filme se debruça sobre o trabalho de conversão da pessoa em ideia, em marca e em lembrança. O que resta de nós depois de nós mesmos?

As confusões gerenciadas pelo delegado da comuna de Agrigento (interpretado por Fabrizio Ferracane) são embaladas numa imagem modesta em termos de encenação, fotografia e montagem. Leonora Addio se reveste de um preto e branco de frágil construção, claramente convertido em pós-produção, e marcado pela textura excessivamente nítida do digital contemporâneo. Há poucos planos ou escolhas de ângulo para cada cena, facilitando o trabalho da produção, e restringindo aquele da montagem. A homenagem ao dramaturgo justifica, até certo ponto, o aspecto teatral do conjunto, onde o espaço se converte em fantasia. O cineasta cola as filmagens pessoais e contemporâneas a cenas do neorrealismo e fragmentos de captações amadoras, acentuando o abismo entre estes registros: as imagens de décadas atrás buscavam apreender o mundo tal qual se encontrava à nossa frente, enquanto as captações ágeis dos nossos dias criam o mundo desejado. O autor, convertido em Deus, designa um universo à imagem e semelhança de seus desejos. No final, o percurso remete a uma estrutura de esquetes costurada de maneira lúdica. Os episódios talvez funcionassem melhor em separado, no entanto, reúnem-se na busca por um longa-metragem coeso, apesar do desnível de tom entre cada aventura das cinzas através da Itália. Nenhum personagem humano será particularmente marcante ou bem construído: Taviani possui pouco interesse pelos coadjuvantes revelados neste road movie.

A prova deste desapego se encontra no episódio final, o único em cores, e abertamente fictício. “O prego” faz referência ao último texto de Pirandello, apresentando um garotinho responsável pelo assassinato de uma criança menor, cravando o objeto do título no corpo da vítima. Ao invés de questionarem os motivos de um crime tão bárbaro, os investigadores se atêm a um aspecto particular da descrição do réu confesso: o fato de que o prego teria caído “de propósito” de uma carroça, para ser usado na morte. Ora, como pode a peça metálica manifestar ambições autônomas? O segmento, novamente, se elabora com o mínimo de esmero em termos de direção, iluminação, figurino, som e montagem, para ser considerado uma obra profissional. Ela se casa mal com a trajetória em preto e branco que domina dois terços da trama, e aparenta ser um apêndice introduzido a posteriori para a rechear a narrativa. A briga interminável entre duas garotas nunca soa verossímil, enquanto a solução para o ato criminoso demonstra criatividade limitada. O diretor investe num projeto marcado por paixão e ambições restritas — ele se diverte, acima de tudo, com a pequena traquinagem. Trata-se de uma ruminação acerca da morte, de Pirandello, e da fronteira absurda entre o real e a ficção. O conceito será mais interessante do que sua realização, o que não impede um prazer modesto e sincero de decorrer desta experiência.

Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2022.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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