Sinopse
Crítica
A jovem atriz Ayomi Domenica é o principal destaque do bom Levante. Dona de um semblante marcante e expressivo, ela interpreta a jovem Sofia, jogadora de vôlei que vive numa bolha transbordante de afetos. Na companhia das amigas de corpos e atitudes diversos, triunfa nas quadras e parece protegida do que o mundo tem de pior. Orientada por uma treinadora exigente, mas carinhosa (vivida por Grace Passô), a garota pode se desenvolver plenamente e projeta um futuro empolgante ao receber a notícia de que está sendo cotada para uma bolsa internacional. Em casa, morando com o pai apicultor (interpretado por Rômulo Braga), Sofia também parece confortável e amparada. A cineasta Lillah Halla opta por uma decupagem muito intimista. A divisão das cenas em planos privilegia as tomadas coladas nas pessoas, às vezes capturando até mesmo as partidas de vôlei por meio de closes dedicados a enfatizar a emoção das esportistas e não propriamente a mecânica do jogo. E essa abordagem se mantém quando surge a crise no horizonte, assim que Sofia começa a ser julgada de várias formas por conta de uma gravidez indesejada, situação inicialmente escondida de todos por medo. Menor de idade, a protagonista pensa imediatamente em abortar, mas sabe que num país ainda tão sequestrado pelo obscurantismo como o Brasil, algo que poderia ser relativamente simples vira um duro calvário.
Há uma preocupação muito clara em ressaltar (e celebrar) a sororidade que envolve Sofia nos momentos mais dramáticos do longa-metragem, como quando é inevitável dividir a situação com o pai e principalmente assim que a gravidez se torna motivo da discussão maior alimentada por moralismo e dogmatismo religioso. Lillah Halla demostra não apenas que as colegas de Sofia são totalmente sensíveis ao seu sofrimento, mas que farão das tripas coração para minimizar o impacto negativo que vai crescendo em ondas – como quando jogamos uma pedra no lago e os efeitos desse gesto escalam até ficarem enormes. O itinerário da angústia que, a despeito de todo apoio feminino, impõe instantes de dolorosa solidão à protagonista, não é muito diferente do que já vimos em produções semelhantes. O que poderia distinguir Levante nesse panorama das bem-vindas iniciativas de discutir cinematograficamente um tema tão importante era uma atenção mais perceptível aos contextos esportivos e sociais. No entanto, ao optar pelo referido intimismo com a decupagem que não valoriza os êxitos e fracassos na quadra, a cineasta impede que o voleibol seja tão importante, a não ser como justificativa do coleguismo benéfico à Sofia ou até da parceria da treinadora, figura de autoridade que de certo modo é maternalmente substitutiva. Sobre o social, Lillah não explora a fundo, somente mostra, a coletividade ao redor.
De determinado ponto em diante, Levante vai adicionando obstáculos exponencialmente no caminho de Sofia. Não bastasse toda a angústia por conta da condição que pode influenciar diretamente a continuidade de sua vida, ela ainda começa a sofrer uma chantagem nojenta da infiltrada na clínica de aborto que, na verdade, é a típica carola religiosa agressiva. Lillah Halla faz a lição de casa ao deixar evidentes a barreiras a serem transportas nessa sociedade que tem núcleos beirando o fundamentalismo, mas perde a oportunidade de tornar a jornada de Sofia ainda mais dolorosa e indicativa por falta de certos ajustes finos. Por exemplo, a ida da jovem com o pai ao Uruguai para tentar viabilizar o procedimento abortivo num país que coloca esse assunto sob a jurisdição da saúde. Trata-se de um movimento pouco agregador, apenas funcionando para estabelecer a distinção entre os países latinos quanto às políticas públicas de cuidado com a mulher. Todavia, não acrescenta muito à Via Crúcis da protagonista. Outro ponto carente de desenvolvimento mais consistente é a constituição do mundo externo às bolhas afetivas que se esforçam para proteger Sofia da ruindade. Vemos manifestações agressivas de religiosos e conservadores, mas é pouco para compreendermos o entorno, isso porque em prol da mensagem a realizadora não confere tintas únicas a esse “inimigo”, preferindo o generalizar.
Mesmo com esses senões, Levante traz um panorama sintomático do que acontece quando dogmas religiosos são utilizados para interferir em questões de ordem íntima que, por sua vez, podem causar grandes distúrbios coletivos. Sim, porque se Sofia tivesse a tranquilidade para escolher com calma o que fazer da gravidez e, uma vez optando pelo aborto, não precisasse carregar o fardo da culpa por exercer a sua liberdade, o drama inexistiria (ou seria brutalmente amenizado). Lillah Halla opta por uma câmera sempre colada das personagens, que descreve suas emoções, tomadas de decisão e atitudes envoltas numa tensão que ganha contornos de problema social. Algumas mudanças abruptas quase descredibilizam certos personagens, como quando o pai logo se torna apoiador da filha em sofrimento, mesmo depois de ter uma resposta inicial pouco confortante. Aliás, o filme poderia equacionar melhor a presença masculina do pai solo, tornando-o menos meramente funcional, quiçá em perspectiva com a treinadora, a figura da mãe substitutiva. O encerramento é um Deus Ex Machina providencial, pois ao mesmo tempo acaba com um problema e revela a agressividade da turba conservadora que mal disfarça o ódio àqueles que não rezam por suas bíblias. Porém, mesmo com essas inconstâncias e fragilidades de execução, o filme serve de veículo ao talento expressivo e compensador de Ayomi Domenica.
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