Crítica


5

Leitores


2 votos 8

Onde Assistir

Sinopse

Anita é uma agente funerária que tem como missão garantir que os cadáveres do subúrbio de Bijlmer, em Amsterdã, tenham cerimônias condizentes com suas respectivas culturas e ritos. No entanto, ela própria duvida de sua vocação, especialmente quando o projeto de construir um centro plural de cerimônias fúnebres se mostra complexo demais.

Crítica

Cada cultura tem cerimônias e sacramentos próprios. E estes devem ser respeitados. Por exemplo, um casamento consagrado pelas leis católicas acontece de certa forma, enquanto um matrimônio celebrado de acordo com as tradições das religiões de matriz africana ocorre de modos bem diferentes. Portanto, a globalização e o crescente movimento migratório impõem desafios ao setor funerário, claro, se levado em conta o desejo de abarcar essa ampla diversidade de cultos e credos. O documentário Lidando com a Morte apresenta o projeto de construção de um centro funerário multicultural em Amsterdã, a capital holandesa. E esse filme elege como protagonista a executiva Anita, a profissional que comandará a empreitada para uma empresa privada. É de sua responsabilidade visitar as comunidades ganesas, indianas e muçulmanas, entre várias outras, para coletar as demandas específicas de cada protocolo. Lá pelas tantas, as ganesas citam como algo essencial ao novo espaço a existência de banheiros amplos que possam servi-las enquanto elas utilizam enormes e pesadas vestes. Então, o que há em boa parte do longa-metragem é um trânsito por costumes distintos quanto às ocasiões de despedida de entes queridos. E a câmera se comporta como mais um elemento, tentando ser invisível e não perturbar as interações, sobretudo os instantes de arrecadação dos dados.

No entanto, é difícil determinar o assunto principal de Lidando com a Morte. Uma vez apresentada a curiosa premissa, temos algumas possibilidades que se entrelaçam e são vagamente desenvolvidas. O filme poderia ser fundamentalmente sobre a mulher que precisa conciliar o respeito às culturas alheias e as exigências de seu empregador como entidade privada. E o cineasta Paul Rigter chega a ensaiar algo nesse sentido, principalmente ao mostrar a reunião de homens e mulheres (todos brancos) ouvindo as reivindicações dos ganeses, mas deixando escapar uma visão tacanha do tipo: “é, mas eles moram na Holanda e precisam se adequar às nossas leis, no fim das contas”. Pena que o flagrante de cunho nacionalista não ganhe espaço como um possível indício da hipocrisia corporativa por trás da iniciativa que supostamente visa contemplar uma pluralidade. Anita é flagrada numa cena belíssima (e triste) dialogando com o pai – ainda lúcido – sobre como será seu iminente velório e o subsequente funeral. Novamente é uma lástima que, depois do bonito momento de intimidade, o realizador utilize adiante as imagens do último adeus ao pai da protagonista como forma simples de estabelecer uma comparação que já tinha sido posta anteriormente. Vemos o culto montado paralelamente com outro celebrado pelos africanos, ou seja, para repetir que há discrepâncias entre os ritos.

O grande problema de Lidando com a Morte é exatamente a falta de apontamentos consistentes. Flertando com o documentário de cunho observacional, Paul Rigter se mantém próximo da protagonista, mas evita sublinhar qualquer aspecto desse cotidiano de prospecção cultural. Seja quando ela tem a plena noção da necessidade de cobrir a cabeça dentro da mesquita ou ao tentar repetir os trejeitos próprios ao funeral hindu, Anita simplesmente é entendida como alguém cumprindo a sua função. O filme não a desenha como uma burocrata empedernida e tampouco enquanto alguém que evidentemente se conecta com as bagagens alheias, diante das quais aparenta respeito. No fim das contas, ela é uma personagem que conduz a nossa experiência pelos meandros de um projeto privado, cujas incongruências surgem à medida que as especificidades socioculturais são colocadas no papel como essências caras. Ainda que gradativamente a complicação de exigências seja assinalada como uma ameaça à execução da obra, a narrativa não enfatiza tantas coisas. Quando muito, há comparações didáticas entre a placidez do enterro orientado pela fé católica e a euforia de alguns egressos do continente africano que festejam a existência do recém-morto. Portanto, novamente uma contraposição rasa. A produção se contenta em identificar componentes, sem interpretar ou comenta-los.

Sem dúvida que essa falta de “opinião” diretiva diz respeito à mencionada inclinação à lógica observacional. Nesse sentido, a câmera (quase sempre na mão) se restringiria a ser um dispositivo de registro sem apontar ou sublinhar situações. Mas, é curioso que em vários outros momentos a encenação flerte com a ficção, vide as duas pessoas microfonadas durante um almoço claramente tendo ciência de serem filmadas ao longe. Outro aspecto desperdiçado – por sequer ganhar profundidade e/ou desenvolvimento – é a estratégia capitalista de tentar concentrar em apenas um lugar as cerimônias de todos os povos que formam essa plural Amsterdã contemporânea. Anita vai até a mesquita na companhia do interlocutor aparentemente íntimo da comunidade muçulmana e se depara com uma estrutura apta a atender aquele povo. Ou seja, o futuro empreendimento que ela representa não tem como prospectar os mais de 15 mil frequentadores do lugar, pois eles já estão assistidos. Ainda dentro desse aspecto empresarial, ela é vista (com o mesmo interlocutor) fechando um acordo de aluguel da estrutura de um centro religioso para a realização de velórios com mais de 500 pessoas. Esses dois momentos de diagnósticos e atitudes corporativos repletos de detalhes não são particularizados. Em ambos temos a executiva angariando informações competitivas, sendo delas a morte o detalhe menor.

Filme visto online durante a 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2021.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deMarcelo Müller (Ver Tudo)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *