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Sinopse

Em 1919, o escritor Lima Barreto foi internado uma última vez  num hospital psiquiátrico após sofrer com alucinações. O artista de 42 anos de idade relembra aquele mais novo, com 30 anos. Enquanto discute com Felipe, um paciente crônico da instituição, relembra o período em que escrevia O Triste Fim de Policarpo Quaresma, e se confronta aos personagens do romance, que ganham vida.

Crítica

Baseado na bem-sucedida peça teatral homônima, Lima Barreto ao Terceiro Dia mantém escancarados os seus vínculos com a arte dos palcos. A iluminação que banha o quarto do manicômio onde o escritor Lima Barreto (Luis Miranda) foi internado aos 42 anos é propositalmente afetada – uma luz azul e dura que vem de dentro para fora. Os diálogos são empostados, em parte por conta das formalidades inerentes às conversas coloquiais há mais de 100 anos, mas sobretudo em virtude da manutenção consciente do cordão umbilical com a obra original. Ainda podemos colocar nessa fatura a caracterização, além dos tons acima da realidade. E, a priori, nenhum problema com o cinema que busca interlocuções com o teatro ou com qualquer outra forma de expressão. Mas, existe uma diferença considerável entre ser reverente e subserviente. Se fosse do primeiro time, o cineasta Luís Antônio Pilar aproveitaria para estabelecer pontes entre teatro e cinema, talvez para contar uma história também a partir das particularidades da encenação. Porém, não é isso o que acontece. Em vários instantes parece que simplesmente estamos diante de um deslocamento sem poucas preocupações com os intercâmbios de linguagem. Trocando em miúdos: é como se ele tivesse pegado os principais elementos da peça e simplesmente justificado a versão audiovisual pelo fato de estar registrando tudo com a câmera.

Dizer que Lima Barreto ao Terceiro Dia é pouco cinematográfico seria incorrer numa leitura rasa do que é uma abordagem cinematográfica. Evidente que a predominância da gramática teatral não invalida o resultado como cinema. Aqui os principais problemas são, na verdade, de ordens mais conceituais. A trama acompanha o encarceramento de Lima Barreto num hospital psiquiátrico que mais parece um depósito de gente. Tendo em vista a assumida falta de realismo do cenário e das interações, há o entendimento do quão degradante é estar por ali. Paralelamente, vemos o autor na juventude (interpretado por Sidney Santiago), quando ainda é um literato iniciante se debatendo contra as dificuldades de escrita. E, ainda, há uma terceira camada: a história de Policarpo Quaresma, o anti-herói quixotesco que se tornou o personagem mais famoso de Lima Barreto – camada dentro da qual o realizador tenta encaixar o protagonismo do desgosto da prometida filha de general. A intenção de toda essa comunicação é fácil de ser compreendida. Temos o autor mais velho e amargurado confrontando sua versão mais moça e repleta de sons e fúrias; e os personagens como projeções de anseios do escritor. Contudo, falta costurar essas perspectivas para que elas sustentem um discurso coeso e consistente.

Toda a extensa história da noiva quase largada à beira do altar serve somente para justificar a cena dos Limas Barretos discutindo o papel da personagem feminina trágica de O Triste Fim de Policarpo Quaresma. A opressão materna, a omissão paterna, as dolorosas dúvidas e contradições da menina repleta de angústias existenciais, tudo isso é sabotado por uma direção incapaz de utilizar os fragmentos dessa representação para elaborar algo sobre Lima Barreto. A própria observação de Policarpo Quaresma (Orã Figueiredo) em sua luta inglória contra os moinhos de vento da sociedade brasileira são melhor justificadas quando a figura ficcional rompe os limites do próprio mundo para denunciar as hipocrisias do seu criador. Luís Antônio Pilar presta muita atenção ao entorno de Policarpo, quase às vezes gerando outro filme dentro do filme, e sequer conseguindo correlacionar as reflexões de Lima Barreto e suas materializações em forma de liberdade poética. Ainda dentro dessa lógica de desperdícios, a promissora interação com o colega de quarto no manicômio é tratada apenas como mais uma rubrica – em que pese a força do ator Eduardo Silva como o interno Felipe. O filme almeja ser uma descida ao inferno de alguém tachado de maldito que atualmente está em crise com suas criaturas. Mas, para que isso acontecesse o realizador precisaria costurar esses níveis com intensidade.

A sensação que prevalece após a sessão de Lima Barreto ao Terceiro Dia é que estamos diante de uma novela comprimida para caber em pouco mais de 100 minutos. Os figurinos e os demais componentes da arte do filme anunciam uma reconstituição de época estilizada e conscientemente falsa. Se há algo de interessante nas opções estético-narrativas de Luís Antônio Pilar é o fato de manter Lima Barreto dentro espaços teatrais internos (e por isso repleto de artifícios) enquanto observa os personagens da literatura do homem negro geralmente em cenários abertos. Está aí, outro contraste basicamente jogado em cena, nunca trazido à tona como uma possibilidade de compreender o que há de verdade, de mentira e de lúdico naquilo. Luis Miranda convence mais nas cenas de intensa explosão emocional, principalmente ao sentenciar a sua versão jovem por idealismo. Já Sidney Santiago tem desperdiçada a sua conhecida capacidade de mergulhar profundamente em personagens complexos. Sua versão 30 e poucos ano de Lima Barreto é restrita a um campo muito estreito de um fervilhar de emoções, dores e amores (ele é o retrato do artista quando jovem). Não à toa, é o seu coadjuvante imediato, aqui o amigo bêbado vivido por Fernando Santana, quem rouba a cena na cara dura. É uma pena que Lima Barreto, um dos gênios da raça brasileira, tenha sido retratado num filme contente em reproduzir na telona a linguagem dos palcos, frágil ao ponto parecer inofensivo pelo excesso de romantismo.

Filme visto durante o 25º Cine PE, em novembro de 2021.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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