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Sinopse

Um cineasta armênio está em busca de locações para seu filme. Em meio às perambulações pelos cenários, ele tem contatos profundos com uma História latente, com os resquícios do que passou, mas que continua reverberando.

Crítica

É difícil saber onde começa a ficção e em que instantes exatamente ela acaba desembocando à seara documental em Limiar. Do ponto de vista clássico, há uma trama encenada, com o diretor armênio investigando as locações de seu próximo filme. Tecnicamente falando, o único aspecto do processo criativo com o qual temos contato é justamente a perambulação por cenários, nessa jornada cujo objetivo imediato e prático é tentar encontrar os adequados à produção. No único instante em que o testemunhamos conduzindo uma cena, lá pelas tantas ele meio que perde o interesse e deixa a câmera rodando sozinha enquanto vai fazer outra coisa. Os cineastas Rouzbeh Akhbari e Felix Kalmenson criam uma experiência essencialmente sensorial nesse trajeto de movimentos rarefeitos e intenções apresentadas no limite da indeterminação. O sujeito passeia pelas localidades sem sinalizar o nível (emocional, existencial, etc) de conexão com os mesmos. No mais das vezes, os planos lentos e longos se demoram nesse jogo cênico franciscano, dando ênfase a uma História que teima em persistir nas colinas, nas ruínas e mesmo na relação que as pessoas têm com espaços.

A busca é por uma ancestralidade latente. Mas, Limiar não nos confere subsídios para diferenciar apatia e introspecção. Para além da beleza de certas composições, vide a neve entrando milimetricamente pela abertura de uma igreja abandonada ou ainda o desvanecimento do homem perante a imponência da natureza, há pouco a ser extraído desse itinerário repetitivo e nada afeito a esclarecimentos. Rouzbeh Akhbari e Felix Kalmenson querem evidentemente fazer o espectador partilhar com o protagonista essa experiência, beirando o transcendental, de procura por raízes desgastadas pela implacável passagem do tempo. Frente aos resquícios de uma fortaleza, por exemplo, isso fica bem mais evidente, inclusive porque a imagem criada deixa à disposição dos resilientes uma carga retórico-dramática. Entretanto, o prolongado vislumbre de uma corredeira não exibe esse efeito. O acúmulo faz os instantes similares soarem como fatigantes obrigações rumo à próxima circunstância genuinamente agregadora. O filme se torna uma experiência bastante cansativa.

Limiar tem outros momentos potentes. O contato com a língua ancestral é feito com uma simplicidade mobilizadora. O sujeito está comendo despreocupadamente diante de sua avó – ela que não aparece no quadro, sendo uma presença projetada pela voz do extracampo –, enquanto pergunta como traduzir palavras banais, do cotidiano, tais como faca, ganso e pão. Nesse ponto, o longa-metragem se desvencilha timidamente da atmosfera hermeticamente etérea para oferecer uma dinâmica sintomática da proposta diretiva. Mal comparando, é como se de um filme como Era uma Vez em Anatólia (2011), realização do realizador turco Nuri Bilge Ceylan, fossem retirados todos os elementos concernentes à investigação (que lá servem como uma bela desculpa para evocar a História adormecida/em vias de desaparecer, mas ainda pulsante) e ficássemos apenas com extensas tomadas do território. O paralelo não é de todo despropositado, pois Turquia ocupou a Armênia no passado e as paisagens de ambos os países carregarem uma senda de conquistas e guerras.

O grande problema de Limiar é ser vago. Rouzbeh Akhbari e Felix Kalmenson não fazem questão de estabelecer um percurso confortável, instigando-nos timidamente a investigar o que se desprende das deambulações do cineasta. A própria escolha da profissão do protagonista parece apenas um fetiche ou uma conveniência para justificar o trânsito. Ele poderia tranquilamente se agrimensor, poeta, arqueólogo, turista curioso, e isso não mudaria muito o desenho geral do filme, uma vez que o caráter criativo de sua ocupação é citado com menos importância do que o plano-detalhe de uma pedra rolando riacho abaixo. É evidentemente deliberado esse processo de depuração do que é humano para conjurar a ancestralidade impressa visível e invisivelmente nas montanhas, relvas e nos resquícios da presença humana obsoleta em determinados lugares. Porém, a falta de algo mais palpável, de uma pulsação que quebre a pasmaceira rapidamente instaurada, fazem do filme um trajeto penoso, instigante à medida que o espectador se dispuser a embarcar sem garantias.

Filme visto online na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2020

 

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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