Crítica
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Sinopse
Roma, Itália, anos 1970. Adri, uma adolescente em plena metamorfose, observa sua família à beira da ruptura.
Crítica
Na Itália, a família é vista tradicionalmente como pilar social. Não à toa, grandes filmes do país falam sobre as rachaduras nessa verdadeira instituição italiana que, então, sinalizam problemas coletivos. Selecionado à 8 ½ Festa do Cinema Italiano 2024, A Imensidão é o retrato de uma disfuncionalidade que raramente entra em erupção, mas cuja pressão está presente diariamente na vivência doméstica. A protagonista é Adri (Luana Giuliani), adolescente nascida mulher, mas que se identifica como menino, inclusive reivindicando que a chamem de Andrea (o que este texto fará a partir de agora, além de utilizar pronomes masculinos para se referir a ele). A trama se passa nos anos 1970, quando a transexualidade era situada num espaço ainda mais marginal de incompreensão. No entanto, o longa-metragem escrito e dirigido por Emanuele Crialese contém esse elemento LGBTQIAPN+, mas não orienta os demais vieses pela inadequação de Andrea com o seu corpo biológico. Aliás, o realizador trata a questão como mais um componente do distanciamento entre Andrea e seu pai, Felice (Vincenzo Amato), homem que tenta comandar a família como provedor clássico, cuja seriedade destoa da exuberância lúdica da esposa Clara (Penélope Cruz). Pode-se dizer que a produção não se agarra ao horizonte queer, partindo dele para construir panoramas significativos. Crialese está mais interessado pela desarmonia familiar.
Tendo essa intenção criativa em vista, a transexualidade de Andrea se torna um agravante das tensões domésticas. O que A Imensidão tem de melhor é a localização entre a sisudez da vida adulta e a abertura ao poético mais associada à infância. Andrea está crescendo, descobrindo corpos, desejos e, em semelhante medida, as amarras sociais. Ele ainda se mantém antenado ao imaginário que volta a meia o ajuda a escapar de uma realidade cinzenta. Por exemplo, para lidar com a própria “inadequação”, cria a história de ser filho de extraterrestres, aliás, com quem tenta manter contato na primeira tomada do filme. Porém, Emanuele Crialese não permite que qualquer elemento sobressaia ao ponto de guiar a trama como um farol, o que, por exemplo, faz dessa imaginação sobre a origem alienígena apenas uma pontuação esporádica. Na medida em que reivindica ser chamado por pronomes masculinos, Andrea oscila entre as brincadeiras infantis com os irmãos pequenos e os testemunhos da agressividade paterna à mãe que representa fielmente o papel de responsável dona de casa zelosa. O protagonista descobre o amor ao atravessar um canavial que separa a sua confortável vivência burguesa dos barracos de um operariado essencial ao desenvolvimentismo urbano da Itália nos anos 1970. Logo depois, testemunha as lágrimas da mãe dialogando com a amante do marido revelando a sua gravidez.
Portanto, Andrea alterna a beleza do romantismo e a dureza da realidade. Pena que Emanuele Crialese não desenvolva determinados componentes que poderiam conferir consistência a essa oscilação, como a ambientação num período econômica e socialmente específico da Itália. Uma vez que não elabora os abismos existentes entre Andrea e a menina por quem Andrea se apaixona ao largo das tensões crescentes entre pai e mãe, o realizador transforma a transposição do canavial (limiar também certamente simbólico) num gesto menos enfático do ponto de vista do discurso de classes. Por sua vez, Penélope Cruz encarna uma personagem típica nos cinemas: a mãe obrigada a sufocar sua espontaneidade em função dos desmandos machistas do marido. Trata-se de uma figura solar, sempre disposta a tornar a vivência menos áspera, contraposta pelo marido agarrado a dogmas e que poucas vezes demonstra a afetividade esperada por Andrea. Mas, é bom que se diga: Emanuele Crialese tenta dissipar um pouco essa polarização, como nas vezes em que mostra o pai como protetor zeloso ou mesmo na suposta irresponsabilidade ao volante que diverte os filhos e preocupa a esposa incomodada com o excesso de velocidade. De todo modo, ele representa a masculinidade opressora. Como homem livre de amarras, ele exige com gestos, comportamentos e palavras, que a esposa aguente calada e se mantenha submissa.
Então, A Imensidão é um conto de amadurecimento de um jovem transexual, mas que não foca na questão de identidade de gênero como algo nuclear, tratando esse assunto como elemento de inadequação dentro de uma família aparentemente feliz, mas internamente disfuncional. Luana Giuliani tem um desempenho ótimo como esse personagem convidado a descobrir o mundo por completo enquanto ainda utiliza as ferramentas típicas da infância para lidar com os problemas e as possíveis angústias. Justamente pela tentativa de criar um cenário amplo com muitos vieses, Emanuele Crialese acaba não mergulhando de cabeça em muita coisa. Ele insere a transexualidade dentro do turbilhão de desajustes adolescentes; enxerga mecanicamente o machismo como mancha naturalizada que faz diversas vítimas; não desenvolve os efeitos da distância entre os moradores dos lados opostos do canavial; e também tira pouco proveito do estrangeirismo da personagem de Penélope Cruz – o fato de ela ser espanhola significa pouco para o filme, no fim das contas. Provavelmente, a forma mais interessante de encará-lo é como coming of age (história de amadurecimento) bem filmado, com personagens interessantes e construído como experiência agradável na qual certos e errados são claramente demarcados (às vezes até demais). Com uma pegada leve, mostra as feridas, mas evita tocá-las para não as abrir.
Filme visto durante a 11ª 8 ½ Festa do Cinema Italiano, em junho de 2024
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