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Crítica


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Onde Assistir

Sinopse

Um pescador de 70 anos, morador de uma ilha no litoral sul do Brasil, ainda não conseguiu se aposentar. Os moradores locais querem melhorar suas condições de trabalho e ter uma vida minimamente digna na velhice.

Crítica

Situada quase na fronteira entre os estados do Paraná e São Paulo, a ilha de Superagüi é um santuário protegido. Ali moram diversas famílias cujo sustento vem estritamente da pesca. Por lei, é terminantemente proibida a agricultura no local, assim como a pescaria na temporada de reprodução das espécies. Ou seja, durante um período do ano os moradores são impedidos de exercer a única função que lhes garante a subsistência. Lista de Desejos para Superagüi é um documentário que mergulha nessa realidade caiçara revelando personagens acostumados a um cotidiano muito específico distante das grandes cidades. Há um caráter etnográfico no modo como a câmera do diretor Pedro Giongo desvenda a cultura e as rotinas dessa extensa comunidade. Nela, geralmente, os homens desbravam as águas de rede em punho, a fim de garantir o ganha-pão, enquanto as mulheres se unem de modo cooperativo para limpar o camarão (um dos principais produtos da ilha) com o intuito de prepará-lo à venda. Na medida em que observa ocasiões distintas, como as práticas de trabalho e o lazer escasso, o cineasta monta um panorama interessante sobre os costumes do lugar um tanto esquecido pelas autoridades, no qual a população está sob risco, pois fica refém de uma monocultura. Mas, curiosamente, a decupagem (divisão das cenas em planos) se assemelha a de uma ficção poética.

Em Lista de Desejos para Superagüi, as bem trabalhadas imagens contêm sempre uma camada a mais, não se contentando somente com a exposição dos fragmentos desse dia a dia na ilha que vai construindo o painel documental interessante. A fotografia assinada por Renato Ogata busca extrair do contato com Superagüi uma dimensão lírica, algo reforçado pelas histórias de pescador sobre a fortuna em ouro enterrada nas redondezas. Uma espécie de protagonista informal, o idoso conhecido como Martelo transmite esses causos como forma de gerar entretenimento, mas também enquanto esperança de que as coisas possam melhorar economicamente num passe de mágica. Pedro Giongo tenta causar um curto-circuito entre ficção e realidade, muitas vezes opondo a rotina difícil de uma gente sofrida que tem sérias dificuldades para sobreviver da continuidade da atividade artesanal de pesca e as lendas desenvolvidas em cenas como a da expedição ao manguezal na busca pelo ouro que pode mudar tudo aquilo. Mas, é justamente na comunicação entre a verdade e a fábula que o filme derrapa um pouco, às vezes parecendo hesitante demais para radicalizar esse diálogo (morno) que poderia ser bem mais vibrante. A ficção penetra na esfera documental de modo tímido, enquanto os esforços documentais são insuficientes para termos uma visão consistente desse ecossistema de gente imersa na natureza.

Candidato a protagonista, Martelo é um marinheiro das antigas, sujeito repleto de causos e que funciona também simbolicamente como o corpo exaurido que carrega as marcas do tempo e da labuta caiçara. O cineasta poderia elaborar um pouco melhor a dimensão mítica latente desse personagem que enfrenta uma disputa contra o INSS para garantir o benefício capaz de lhe prover o dinheiro suficiente para tratar das vistas cansadas. Em certo momento de Lista de Desejos para Superagüi, ele vai à cidade grande mais próxima, na companhia de amigos arrolados como testemunhas, para reivindicar diante de um juiz exatamente um suado benefício previdenciário. No entanto, Pedro Giongo não trabalha a partir disso algo que acrescente muita coisa ao discurso, sendo a sequência fora somente uma reafirmação da situação precária à qual muitos moradores do local são submetidos por viverem numa área de proteção ambiental repleta de restrições. Aliás, nessa ida de Martelo em busca de seus direitos, há um contraste entre esses homens numa pequena embarcação e a movimentação portuária dos guindastes ao fundo, numa clara tentativa de estabelecer um contraponto e, ainda, de afirmar que Martelo e os demais caiçaras representam o passado que tende a ser asfixiado pela voracidade do presente e do futuro. Porém, essa ideia surgida da relação entre as camadas do plano não é retomada.

Selecionado para a Mostra Aurora da 27ª Mostra de Cinema Tiradentes, Lista de Desejos para Superagüi é um filme empenhado em se desdobrar como documentário, principalmente, tendo em vista a utilização da tradição de histórias de marinheiros transmitidas pela humanidade das mais diversas maneiras (tradição oral, literatura, artes plásticas, cinema, etc.). No nosso imaginário alimentado por essas formas distintas, o lobo do mar é o desbravador das águas revoltosas, aquele que adquire familiaridade com os mares e oceanos, mesmo que nunca consiga revelar totalmente os seus segredos. É uma relação simbólica ambígua que Pedro Giongo persegue como motor poético para pincelar a dureza da realidade. Mas ele acaba ficando estritamente numa superfície. Assim sendo, a membrana de ficção lançada sobre aquela realidade dura é fina demais para a ressignificar, não tendo força suficiente para embaçar as fronteiras entre uma coisa e outra. Esse aceno à dimensão mitológica é tímido, surgindo esporadicamente como uma bem-vinda tentativa, mas não expandido como componente determinante. Pedro hesita diante da possibilidade de “contaminar” demasiadamente o retrato da comunidade isolada, com seus costumes e práticas diários específicos, mas seduzido pela chance de ir um pouco além do que se vê. Então, as intenções e as imagens poéticas são ótimas, mas falta o mergulho mais profundo.
Filme visto na 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2024.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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